As palavras de Bolsonaro sobre o que os franceses não suportam mais e os imigrantes me deram um curto-circuito.
“(Migrantes) querem fazer valer sua cultura, os seus direitos lá de trás e os seus privilégios e a França está sofrendo com isso”.
Do que ele está falando?, me perguntei.
Como imigrante na França não consegui entender que privilégios eu estaria tentando impor aos franceses.
Nem consigo imaginar que privilégios eu pudesse ter tido no Brasil antes de vir para cá, sendo que, na verdade, o que me trouxe até aqui foi a precariedade.
Alguns meses depois de terminada a graduação, entrei na geração nem-nem, sem qualquer perspectiva de vida, mesmo tendo estudado numa instituição de renome, com um currículo de idiomas e experiência.
Talvez tivesse sido esse o meu “privilégio” no Brasil, onde a universidade pública ainda é uma espécie de espaço privado, reservado praticamente às classes médias e altas do país, um lugar onde o conhecimento é tradicionalmente um privilégio e não um direito.
De resto, lá me via eu na periferia da Zona Leste de São Paulo, num bairro descrito por qualquer pessoa como “feio”. Mas é verdade que eu não corria risco de morrer ali.
Tirando a angústia diária em relação ao que seria da minha existência, eu vivia num ambiente de relativa paz. Vivia em harmonia com amáveis vizinhos, gente simples, de conversa fácil.
Não corria o risco de morrer ali. Será que é isso que Bolsonaro entende por privilégio, alguém de origem modesta poder viver? Ou seria para ele o direito à vida um privilégio?
Se for isso, ele tem razão. Muitos dos outros migrantes que vieram para cá o fizeram com o objetivo de fazer valer esse “privilégio”, pois onde viviam, na verdade, sobreviviam.
A falta de perspectivas de viver se tornava uma lei cada vez mais insuportável. De um lado, entre africanos, sejam brancos ou negros, a disparidade gritante entre ricos e pobres, a miséria medieval, o desemprego massivo de jovens os expulsou de lá.
De outro, a violência de milícias, a perseguição política, a guerra, verdadeiras ditaduras, terras onde democracia é apenas uma palavra distante. Encaixam-se nesse caso os sírios, afegãos e paquistaneses que fugiram para cá.
Se no Brasil havia quem me dissesse que eu era incapaz, eu quis fazer valer o “privilégio” de exercer minha capacidade. Os franceses que não suportam mais imigrantes me aceitaram para estudar um mestrado em cinco universidades.
Pagando valores que os franceses não pagam, simbólico para eles, caros para mim, tive o “privilégio” de escolher a formação com que sonhava.
Tive o “privilégio” de me sentir humilhado no Consulado francês para obter um visto, “humilhado” por não ter dinheiro o bastante para vir.
Meu “privilégio” foi ter uma tia professora de escola municipal, que me emprestou suas economias, o que tornou possível o sonho de existir novamente em uma outra sociedade.
Para poder bancar o aluguel, trabalho e devo morar a uma hora da universidade. Para ter o “privilégio” de estar em Paris, meus colegas estrangeiros pagam absurdos, muitas vezes para viver em 10 metros quadrados, as famosas “chambres de bonne”, outrora quartos da empregada.
Os imigrantes que não têm o “privilégio” de estudar se aglomeram em favelas como a Porte de la Chapelle, em habitações precárias, não raro demolidas pela prefeitura, com todos os pertences que esses privilegiados acumularam desde sua chegada.
Outros têm o “privilégio” de ir parar em abrigos, em quartos apinhados de gente. São os que vagam pela cidade, esperando meses por um visto de refúgio, asilo, ou por uma deportação.
Os vínculos que criaram com pessoas aqui são desfeitos e podem ter o “privilégio” de voltar para a Itália ou a Grécia, a porta de entrada da Europa. “O povo francês acolheu da melhor maneira possível”. Será? Talvez a realidade em Paris seja boa demais.
Olhemos para outros lugares. Em Pas-de-Calais, no norte, um campo de refugiados foi montado, mas se tornou uma outra espécie de favela. Era chamado de “floresta”, mas rodeado por uma rodovia e o nada.
Parecia mais um espaço de confinamento. Foi desmantelado e os imigrantes foram enviados a diferentes cidades do país, muitas vezes separados de seus familiares.
Em Marselha, no sul, a migração se assentou. Estive lá no último verão, e o Velho Porto dá a sensação de estar no Magreb (a África branca e árabe), uma região onde moram pobres, segundo a descrição de um documentário do canal France 2 sobre a precariedade dos prédios locais e aquele desabou no dia 5 de novembro, matando 8 pessoas.
As vítimas eram francesas, de origem local e estrangeira. Os franceses que não suportam os imigrantes foram às ruas protestar, não contra a migração, mas contra a prefeitura, comandada pelo republicano Jean-Claude Gaudin, da direita.
Um analista jurídico, entrevistado pela France 2, mostra um e-mail que enviou à prefeitura com um relatório que ele elaborou sobre o risco iminente de desabamento. Ele mostra a confirmação de recebimento; nada foi feito para impedir a catástrofe. Manifestantes se revoltam com o lucro dos imóveis que falou mais alto que o valor da vida.
O que dizer dos africanos escravizados em plena França? Mais de trezentas quadrilhas de escravidão moderna foram descobertas recentemente, mas uma reportagem do La Croix aponta que elas são apenas a ponta de um iceberg em grande parte desconhecido.
Egípcios aliciados que chegam ao território francês sem documentos são forçados a trabalhar e viver em canteiros de obras para pagar a “dívida” da viagem, ameaçados de suas mortes ou de seus familiares caso denunciem as condições a que são submetidos.
A imigração sempre foi uma realidade na Europa. A França é um país de migrantes e sempre foi. E não se pode esperar outra coisa quando ela colonizou diversos países na África, mantendo até hoje o controle sobre suas políticas monetárias sem que isso resulte numa igualdade de níveis socioeconômicos, mas na disparidade de realidades?
Talvez Bolsonaro se referisse ao movimento dos coletes amarelos, ao dizer que está “insuportável” viver em alguns lugares da França.
A reivindicação central do movimento é por mais poder de compra e contra o desprezo que sentem na política de Emmanuel Macron, que, na percepção de diversos setores da sociedade francesa, tenta uma neoliberalização do Estado e do país, abrindo empresas públicas como a SNCF (de trens) à concorrência privada, suprimindo linhas de transporte ferroviário consideradas não “rentáveis”, subindo o preço do combustível sem um processo de diálogo com a sociedade sobre a transição ecológica.
Diversos movimentos se juntam a eles. Os estudantes do ensino médio se manifestaram e foram humilhados pela polícia em Mantes-la-Jolie, que lhes mandou se ajoelharem e colocarem as mãos para trás, num vídeo que viralizou nas redes sociais e chocou o país.
Eles protestam contra a seleção que o governo quer implantar no acesso à graduação. Até então, o acesso à universidade era universal.
Coletes azuis, os policiais também protestam, porque o governo não pagou suas horas extras frente aos coletes amarelos ou ao atentado de Estrasburgo.
Os estudantes estrangeiros se revoltam porque o governo quer multiplicar por quinze o valor da taxa de inscrição já a partir do ano que vem.
Um movimento de revolta atravessa a França não exatamente por causa da imigração, que já não vive mais o ápice da crise, observado na Europa em 2015. O que está deixando a França em fúria é um modo autoritário de governar. Que quer relegar a vida a servir o Poder. Que pede um sacrifício momentâneo para a maioria e não faz o mesmo com uma minoria.
Um governo que os franceses sentem que quer lhes deixar mais desprotegidos, diminuindo o tamanho do estado e precarizando os serviços públicos.
O que os franceses não suportam é o que Bolsonaro quer fazer no Brasil e que Macron demonstrou diversas vezes querer implantar aqui. A resistência se dá porque o histórico de revoluções desde 1789 instaurou uma tensão entre povo e Estado, em que o primeiro exige que o segundo proteja seus direitos e que garanta seu direito à vida com plena dignidade.
Os coletes amarelos querem que Macron restabeleça o imposto sobre grandes fortunas, o que o segundo reluta em fazer. O Estado francês é considerado um dos mais generosos do mundo em programas sociais e o que muitos franceses não suportam é que tentem desfazer essa conquista histórica.
E é isso que as forças que apoiam Bolsonaro fizeram no Brasil e deverão aprofundar. Ele pergunta “vocês sabem a história dessa gente, né?”, demonstrando desconhecê-la.
Que há franceses contrários à imigração e xenófobos, isso é fato. Mas eles perderam as eleições no ano passado, com 33% dos votos. A maioria (66%) se lembrou do risco que significa o discurso da extrema direita, aquela que colaborou com o nazismo durante o regime de Vichy.
O adversário ganhou falando na coesão de um projeto europeu. Agora quem perde é ele, adotando discursos contraditórios em meio a práticas excludentes.
O Estado que me acolheu foi um Estado em consonância com o artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada em Paris em 1948: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Eles são dotados de razão e de consciência e devem agir uns para com os outros num espírito de fraternidade”. Declaração da qual tanto a França quanto o Brasil são signatários.
Minha situação é diferente daquela de muitos imigrantes no que tange a razão pela qual deixaram seus países. Mas segundo o filósofo Etienne Tassin, somos todos exilados, seja o exílio forçado ou por escolha: “(exilado é) aquele que saiu de sua condição (ex-salire, do latim)”.
“Uma situação inicial tornou imprópria à satisfação da realização de si para que seja necessário procurá-la em outro lugar”, define. E o que buscamos, a dignidade, é previsto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos enquanto tal, não como privilégio.
A aposta em desestabilizar um governo democrático que Bolsonaro apoiou destruiu nossa economia e me empurrou para cá, um jovem que como muitos não encontrou um lugar na sociedade brasileira. Outros motivos trouxeram outros exilados.
A ignorância dessas realidades fazem com que as palavras de Bolsonaro sejam um verdadeiro vexame para um chefe de Estado, que antes de sua posse, já teve, como disse o Les Echos, sua primeira “mini-crise diplomática com Paris”, e foi ridicularizado pelas evidências apontadas pelo embaixador francês nos Estados Unidos: “63.880 homicídios no Brasil em 2017, 825 na França. Sem comentários”.
Claro ficou que o que vim fazer aqui assim como os outros exilados não foi buscar privilégios. Privilégio que tive foi ouvir gente que me dizer “seja bem-vindo”, “tomara que você fique” e “você é mais útil aqui”.
Bolsonaro presta um desserviço ao atacar a migração quando mais de um milhão de cidadãos brasileiros vivem no exterior e mais de 28 mil na França, segundo dados da Organização Internacional para as Migrações.
O país que ele diz não suportar mais a migração é o que ganhou a Copa do Mundo quase que exclusivamente com jogadores de origem migrante.
Num exercício de intromissão diplomática, Bolsonaro faz o Brasil passar por um vexame internacional. Próximo presidente do país, fala do que não conhece e demonstra ser o mestre da inverdade.
Fonte: Diário do Centro do Mundo - DCM
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