Publicado originalmente no site Sul21
POR CAROLINE SILVEIRA BAUER, professora de História do Brasil na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pela Universitat de Barcelona, é autora do livro “Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória”
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1968 não foi um dia qualquer e essa afirmação transcende a superstição do dia 13. Na véspera, a Câmara dos Deputados rejeitou, por uma diferença de 75 votos, o pedido de autorização para abertura de processo no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o deputado federal pelo MDB, Márcio Moreira Alves. O parlamentar, em setembro daquele ano, pronunciou um discurso considerado atentatório e ofensivo às Forças Armadas. Frente à negativa da Câmara, o Conselho de Segurança Nacional, órgão vinculado diretamente à Presidência da República, cujo objetivo, expresso no artigo 90 da Constituição de 1967 é “assessorar o Presidente da República na formulação e na conduta da Segurança Nacional”, reuniu-se no dia seguinte no Palácio das Laranjeiras, e aprovou por ampla maioria de votos a promulgação do Ato Institucional número 5.
Hoje, em uma visão retrospectiva, analisando o episódio e suas consequências, sabe-se, por exemplo, que o AI-5 teve uma vigência de dez anos, que suas medidas resultaram na institucionalização do terrorismo de Estado no Brasil, etc. Contudo, o que gostaria de propor nessa conjuntura de rememoração dos 50 anos dos acontecimentos de 1968, é que analisemos aquele 13 de dezembro de 1968 como um condensador das experiências de sonhos e utopias e de terror. Havia um futuro aberto para aquela geração, onde cabiam esperanças de reformas, e revoluções. O risco que corremos ao propor essa abordagem é de ignorarmos a complexidade das relações sociais, as chamadas “zonas cinzas”, ao privilegiar uma dualidade que é simplificadora.
Assim, partindo do potencial catalizador que 13 de dezembro de 1968 possui, e da possibilidade de explorar esse potencial explicativo, minha proposta que é façamos uma anamorfose daquela sexta-feira, e que recuperemos outros episódios ocorridos naquele ano a partir de fatos transcorridos durante aquelas 24 horas.
Sonhos e Utopias
A final do IV Festival da Canção Popular Brasileira ocorreu no dia 9 de dezembro de 1968. Realizada no Teatro Record Centro, na cidade de São Paulo, foi transmitida pela Rede Record de Televisão. Pelo júri especial, a canção e interpretação vencedoras foi “São, São Paulo Meu Amor”, de Tom Zé, e, pelo júri popular, o samba de amor “Benvinda”, de Chico Buarque. Tom Zé cantaria em versos pequenos cotidianos de uma grande cidade sob a ordem capitalista e ditatorial:
“São, São Paulo/ Quanta dor/ São, São Paulo/ Meu amor// São oito milhões de habitantes/ De todo canto em ação/ Que se agridem cortesmente/ Morrendo a todo vapor/ E amando com todo ódio/ Se odeiam com todo amor/ São oito milhões de habitantes/ Aglomerada solidão/ Por mil chaminés e carros/ Caseados à prestação/ […] Salvai-nos por caridade/ Pecadoras invadiram/ Todo centro da cidade/ Armadas de rouge e batom/ Dando vivas ao bom humor/ Num atentado contra o pudor/ A família protegida/ Um palavrão reprimido/ Um pregador que condena/ Uma bomba por quinzena/ […]”
Alguns meses antes, em setembro, ocorreram as eliminatórias do III Festival Internacional da Canção Popular, outro concurso de músicas transmitido pela Rede Globo de Televisão. Nesta edição, as eliminatórias foram divididas em duas fases: a primeira em São Paulo, realizada no Teatro da Pontifícia Universidade Católica (Tuca), e a segunda, no Maracanãzinho – onde também foi promovida a grande final. Na etapa paulista, em 14 de setembro, Caetano Veloso foi vaiado quando cantou com Os Mutantes a música “É Proibido Proibir”, proferindo um discurso que se tornou célebre.
A grande final, ocorrida no dia 29 de setembro, no Maracanãzinho, também foi marcada por polêmicas. Ao anunciar que “Para Não Dizer que Não Falei de Flores”, de Geraldo Vandré, conquistara o segundo lugar, o público, de aproximadamente 20 mil pessoas, iniciou uma intensa vaia que quase impediu que “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, declarada vencedora, fosse interpretada por Cynara e Cybele.
Curioso que, ao rememorar esses acontecimentos, parece que “Para Não Dizer que Não Falei de Flores” embalara todas as manifestações de 1968, o que reforça a argumentação de que esse é um ano que concentra múltiplas temporalidades e alguns anacronismos.
E, dentro dessas problematizações temporais que o ano nos coloca, poderíamos dizer que 1968 começou no dia 28 de março quando, durante uma manifestação estudantil no Rio de Janeiro, o estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto foi morto pela Polícia Militar no restaurante estudantil do Calabouço. O assassinato de Edson Luís fez com que a União Nacional dos Estudantes (UNE) decretasse greve geral estudantil e passeatas de protesto foram promovidas pelo país. No dia 30, o Ministro da Educação e Cultura, Gama e Silva, manifestou contrariamente às manifestações estudantis e de crítica à repressão, e ordenou que essas manifestações fossem reprimidas em todo o território nacional. A UnB se encontrava, no início de abril, sob cerco policial.
Em maio, em consequência à mobilização dos estudantes, foi aprovada a Lei n. 5.439, de 22 de maio de 1968, que permitia a responsabilização de jovens de 14 a 18 anos de idade, e “se os elementos referidos no item anterior evidenciam periculosidade, o menor será internado em estabelecimento adequado, até que, mediante parecer do respectivo diretor ou do órgão administrativo competente e do Ministério Público, o Juiz declare a cessação da periculosidade.” O terror, existente desde o dia 31 de março de 1964, amplia suas definições de potenciais inimigos.
Em junho, a UNE, com a autorização dos governos federal e estadual, realizou no dia 26, no Rio de Janeiro, a passeata que ficou conhecida como “Passeata dos 100 mil”. Ao longo de todo ano, trabalhadores de Contagem e Osasco realizaram greves que paralisaram diversas fábricas, mobilizando milhares de operários. Nenhuma reivindicação foi atendida, e os sindicatos sofreram a intervenção do Estado. Hoje, sabemos da conivência dessas empresas com a repressão, não somente no seu financiamento, mas em manter seus funcionários sobre constante vigilância.
O terror começa a caminhar lado a lado com os sonhos e as utopias quando é descoberto, em outubro de 1968, o XXX Congresso da UNE, que estava sendo realizado clandestinamente na cidade de Ibiúna, em São Paulo.
Em novembro, a ditadura promulga a lei n. 5.536, de 21 de novembro, submetendo à censura prévia o cinema, a rádio, o teatro e a televisão. Uma censura sempre política, que trazia o tema da moralidade para o debate da segurança nacional. Havia muita gente incomodando, e não necessariamente militantes de organizações de esquerda armada, mas sim gays, mulheres, negras e negros que não aceitavam as posições que historicamente foram relegados e relegadas.
O Terror
A capa do Jornal do Brasil do dia 14 de dezembro de 1968 trazia em seu canto superior esquerdo a previsão do tempo para aquele sábado: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máxima 38º, em Brasília. Mínima: 5º, nas Laranjeiras.” Curiosamente, uma triste coincidência: no dia anterior, 13 de dezembro, data da promulgação do Ato Institucional número 5, comemorava-se o “Dia do Cego”.
Aquele dia 13 começou cedo. Ministros militares mantiveram contatos telefônicos e, depois, dirigiram-se para o Palácio das Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro, Estado da Guanabara, para reunirem-se com o general Arthur da Costa e Silva para definir a resposta da ditadura ao ato considerado de “subversão” da Câmara dos Deputados ao não permitir o processamento de Márcio Moreira Alves. Naquele momento, Costa e Silva incumbe Luís Antônio Gama e Silva, seu Ministro da Justiça, da redação de um novo Ato Institucional.
Mais tarde, às 16 horas, iniciou-se no Palácio a 43ª sessão do Conselho de Segurança Nacional. Estavam presentes Costa e Silva, seu gabinete, o secretário-geral do CSN, os ministros militares, os demais ministérios, e os chefes do SNI, do Estado-maior das Forças Armadas, do Estado-maior da Armada, do Estado-maior do Exército e do Estado-maior da Aeronáutica.
Às 19 horas, o programa A Voz do Brasil anunciava que, a qualquer momento, o governo faria um importante pronunciamento. As emissoras de televisão projetavam slides com a palavra “Atenção”, afirmando que estava tudo pronto para a comunicação. Contudo, somente às 22 horas e 45 minutos o Ministro da Justiça, Luís Antonio da Gama e Silva, entrou no Salão Nobre do Palácio das Laranjeiras, onde já estavam outros ministros, assessores e diretores da Presidência e outras pessoas, sentou-se ao lado do locutor oficial de A Voz do Brasil, Alberto Curi e, falando em rede nacional de emissoras de rádio e televisão, anuncia que o governo decidira adotar uma série de medidas “para garantir a vitalidade da Revolução.”
“Brasileiros:
A revolução democrática de 31 de março de 1964 visou a dar ao país o regime de paz e tranquilidade da ordem econômica, política e social. Seus objetivos foram inicialmente determinados nos Atos Institucionais e sob o Governo do eminente e saudoso Presidente Castelo Branco, a revolução de 31 de março de 1964 logrou, indiscutivelmente, os melhores êxitos. […]
Ninguém pode contestar, portanto, que a Revolução de março de 1964 trouxe indiscutíveis benefícios morais e materiais para o Brasil. Todavia, muitos não a quiseram compreender, e, pouco a pouco, as forças adversas, através dos mais variados processos, e dos mais diversos comportamentos, iniciaram movimentos de agitação, e de subversão, comprometendo a ordem política e social, gerando intranquilidade, prejudicando mesmo às exigências fundamentais da vida do povo brasileiro. Nesses últimos meses, as agitações se ampliaram, a guerra revolucionária se iniciou, nos mais diferentes setores partiram, comprometidos com o regime deposto, para combater a revolução. Esta todavia, não poderia falhar a seus propósitos, não poderia negar as suas finalidades, não poderia de forma alguma ser traída, por aqueles que tudo fizeram para dar ao Brasil melhores dias de paz e tranquilidade, de uma autêntica ordem democrática, onde todos pudessem viver a vida digna de ser vivida. […] o Governo da República não poderia de forma alguma falhar a seus compromissos, e a seus deveres com a Nação, se não procurasse resguardar, de qualquer maneira, ainda que com grandes sacrifícios, aquele regime, de paz, de tranquilidade, de desenvolvimento social, econômico e cultural, que era, entre outros, os propósitos da Revolução de 31 de março. Em face dos últimos acontecimentos, que são públicos e notórios, atingindo os mais variados setores da vida nacional, S. Exa. o Sr. Presidente da República, reunião hoje o Conselho de Segurança Nacional, para que fosse adotada uma relevante decisão: preservar e salvaguardar, defender os ideias da Revolução de março de 1964.”
Após seu pronunciamento, Curi leu a íntegra do Ato Institucional número 5 e o Ato Complementar número 38, todos no mais profundo silêncio, interrompido somente pelos ruídos das máquinas fotográficas. Às 23 horas e 30 minutos, Gama e Silva deixou o Palácio das Laranjeiras, afirmando, sorridente, que “esta sexta-feira foi 13 para muita gente”.
Por fim, recuperando a ideia de que 1968 possui uma temporalidade específica, e que seria “o ano que não terminou”, citando o título do livro de Zuenir Ventura, gostaria de lhes mostrar uma fotografia muito recente, mas que também traz consigo toda uma carga simbólica fortíssima.
A fotografia é de Eduardo Matysiak, e foi tirada no dia 19 de abril de 2018, em frente a sede da Polícia Federal em Curitiba. Nela, um senhor de 79 anos, Leonardo Boff, aguarda autorização para visitar Lula. O pedido é negado. Boff, então, grava um vídeo para o amigo, onde diz as seguintes palavras: “Lula, eu estou aqui, profundamente indignado […] eu, como teu amigo, pudesse entrar de forma humanitária, dar-te um abraço, mostrar nossa amizade. Negaram nossa humanidade e a tua. Por isso, eu sigo indignado, mas ao mesmo tempo tenho esperança, porque a esperança é a última palavra, e ela vai tirar você dessa exclusão, e vai levar você ao lugar que te pertence: o meio do povo.”
Sonhos, utopias e terror contemporâneos. 1968 possui uma atualidade para além de seu cinquentenário.
Fonte: DCM
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