por Marco Aurelio Ribeiro
A política da repressão praticada hoje, em todo o país, não apresenta resultados há décadas, a não ser o aumento da violência e do número de mortes
Somente de janeiro a junho deste ano ocorreram mais de 2,6 mil tiroteios no Rio. Estes foram responsáveis por quase 800 mortes, segundo o aplicativo Fogo Cruzado, da Anistia Internacional, que registra os dados da violência no estado. Um dado revelador é que a maioria dos tiroteios ocorreu em áreas onde estão implementadas as Unidades de Polícia Pacificadora, UPPs. Outro dado importante é que São Gonçalo foi o local com a maioria dos tiroteios. E esse é sintomático exatamente por ser o local onde se encontra o batalhão que sofreu recentemente uma operação que terminou com a prisão de quase um terço dos policiais locados lá. É de se suspeitar facilmente que apenas a polícia não resolve o problema da violência, e que em muitos casos, se não em todos, ela é ao menos um dos componentes diretos de responsabilidade por seu aumento.
A política da repressão praticada hoje em todo o país não apresenta resultados há décadas, a não ser o aumento da violência e do número de mortes, inclusive de policiais. No fundo essa política equivocada, que é muito lucrativa para diversos segmentos econômicos e até religiosos, apenas aprofunda e enraíza cada vez mais as segregações sociais e raciais.
A sociedade é a grande vítima dessa política desequilibrada, mas quem paga o preço maior são as pessoas residentes em regiões de vulnerabilidade e especial as negras. A classe média também é vítima da violência, mas em número representativamente inferior aos das classes D e E. Os policiais também o são, mas representam menos de 0,5% do total de vítimas no país, ao passo que são responsáveis por quase 10% destes.
Para trazer luz ao assunto podemos tentar entender como funcionou a política do secretário que mais tempo permaneceu à frente da Segurança Pública no Rio, o criador do badalado Programa das UPPs, José Mariano Beltrame, e os resultados desta. Ao longo de quase dez anos em que esteve à frente da pasta Beltrame teve acesso a bilhões de reais para justificar a sua política de "pacificação”, iniciada pelo Governador Sérgio Cabral em 2008. Nunca um secretário de segurança teve tantos recursos à disposição.
O secretário implantou 38 UPPs em mais de vinte favelas na cidade. E qual foi o resultado? Um fracasso! A lógica das UPPs começou a entrar em crise publicamente logo após o espetáculo midiático da ocupação do Complexo do Alemão. Além dos inúmeros problemas dentro das próprias unidades, como as mortes de moradores por policiais, corrupção, e até mesmo a formação de milícias, a criminalidade na cidade no Rio aumentou nos dez anos da atuação de Beltrame, e acabou culminando com o seu pedido de demissão em 2016.
Em certo período o secretário até comemorou uma redução expressiva no número de homicídios no estado, mas segundo especialistas a principal causa foi a coincidência com a melhora da economia, da empregabilidade, e das políticas sociais do governo Lula. Contudo, ao contrário da queda inicial da taxa de homicídios, a da violência policial explodiu. Apenas no Rio foram contabilizadas 4,371 mil mortes em autos de resistência até 2010, início da gestão Beltrame.
Diante da falida política de segurança pública praticada no Rio nos últimos dez anos e que custou bilhões aos cofres públicos, hoje deveríamos nos perguntar se o estado tivesse investido tantos recursos em políticas de inclusão social talvez o Rio experimentasse agora uma realidade diferente. Durante a gestão Beltrame os orçamentos das polícias Civil e Militar e da Secretaria de Segurança aumentaram 215,6%, alcançado um volume de recursos de quase 40 bilhões de reais.
O montante foi superior aos destinados à saúde e à educação durante o mesmo período no estado. Beltrame se utilizou de tais recursos para estabelecer uma verdadeira máquina repressiva. Isto fica explícito na concentração de recursos no policiamento ostensivo e de rua, em detrimento do de inteligência. A PM passou dos 64,5% do orçamento em 2006, para 72,8% em 2016. No mesmo período a Polícia Civil, a investigativa, caiu dos 33,4% para ínfimos 25%.
A concentração de recursos na polícia de militar exemplifica a política que acredita no confronto e que abre mão da estratégia como método mais eficiente de combate à criminalidade sem o emprego da violência. Esse é mais um dado que joga contra a crença no enfrentamento entre estado e criminosos como caminho para a pacificação. Não podemos esquecer ainda que a ultrapassada e fracassada guerra as drogas é um fator importante na criminalidade e na violência. É através dela que se paga propina a policiais, que se obtêm recursos para a compra de armas de grosso calibre, e que financia todo um aparato institucional das organizações criminosas no Brasil.
A descriminalização e a legalização, experimentada em diversos países com sucesso, é fortemente criticada pelas retrógradas bancadas da bala e da bíblia, que parecem preferir conviver com o crime fortalecido e organizado. Ao que tudo indica, uma população amedrontada pela violência parece ser um bom negócio para estes setores.
A violência no Rio e no Brasil é reflexo de um aprofundamento contínuo das desigualdades sociais, da ausência de reparações históricas e de uma sequência de políticas equivocadas de combate a violência, como a “gratificação faroeste” implementada pelo governo Marcelo Alencar (1995-1999), onde policiais eram premiados pelas mortes que perpetravam em confrontos. Muitos especialistas acreditam inclusive que este é o marco do degringolamento total da violência no Rio.
Esta dura realidade rebate categoricamente a tese de alguns direitistas, em especial os fanáticos seguidores do Bolsonaro, de que a resposta à criminalidade passa pela militarização e pelo acesso às armas pela população. Se aqueles que são "preparados" para enfrentar a criminalidade e que possuem autorização para andarem armados, e as usarem, são peça fundamental para o aumento da violência, como poderá ser a ampliação desta estratégia a solução? O único caminho possível para a diminuição da violência é a cidadania. E esta só pode ser vislumbrada com políticas urgentes de diminuição das desigualdades sociais.
Além disso, o estado precisa alcançar e atender as classes sociais menos favorecidas com o seu aparato institucional. Esses indivíduos precisam ter acesso a uma educação de qualidade, a saúde, saneamento básico, urbanização, cultura e lazer. A pacificação pretendida, ao menos pela maioria da população, passa pela reparação e pelo acesso aos equipamentos e políticas do estado, e não por uma política de ocupação policial e de armamento da população. A desmilitarização e a humanização das polícias são imprescindíveis para obtenção de sucesso na diminuição da violência. E por fim, e mais importante, as elites financeiras e políticas do país, que não vivenciam o problema da violência, devem abrir mão de ao menos uma pequena parcela de sua absurda acumulação de recursos financeiros, por bem ou por mal, para que alcancemos o país saia definitivamente do estado de guerra em que se encontra a décadas.
* Sócio desde 2016
Fonte: Carta Capital
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