domingo, 3 de maio de 2020

Coronavírus e o pensamento mágico ao qual nos agarramos, por Daniel Dalmoro

Arte: Agência Pública
Para o vulgo, a ciência é apenas outra crença e os métodos de uma pesquisa exitosa não diferem em muito de uma boa reza.
Uma das (muitas) coisas que a pandemia de coronavírus escancarou é nossa (extrema) dependência do pensamento mágico. Trata-se de algo desde sempre evidente e utilizado, mas que neste momento ganha contornos grotescos – justo por não estarmos (ainda) no fim da linha, quando vale apelar para (quase) qualquer coisa.
Como seres inseridos na cultura e sujeitos do inconsciente, penso que o que chamo aqui de “pensamento mágico” seja algo normal na nossa forma de se relacionar com o mundo: não damos conta de compreender plenamente o que acontece em nosso entorno, não somos capazes de entender tudo o que se passa em nosso interior, o apelo a causalidades simplistas e “mágicas” é uma forma de podermos lidar com esses desconhecimentos e seguirmos nossa vida quotidiana. A questão maior é até que ponto esse tipo de pensar (e sentir) está arraigado em nós, forçando negar a realidade óbvia – a começar pela nossa própria ignorância (e impotência) – em favor de projeções simplistas, frutos do desejo – individual ou socialmente compartilhado.
Os exemplos nesta pandemia abundam. Logo no início, minha mãe conta que uma mulher na farmácia a interpelou e explicou: bastava não ficar pensando no vírus, que isso resolvia: o problema era que o pensamento atraía o vírus. Minha mãe, ainda que sem formação universitária, é consideravelmente cética e inteligente, respondeu que não sabia do vírus ser capaz de ler pensamentos, e por ora preferia seguir o isolamento social, mesmo. A mulher era a versão quântica da ação do presidente: enquanto no mundo se discutia como minimizar a pandemia e proteger a população, aqui discutíamos se o vírus existia realmente (afinal, ninguém nunca viu o vírus transitando pela cidade), se a pandemia era de verdade; e caso fosse, se era fruto do avanço humano sobre biomas desconhecidos ou uma arma comunista feita em laboratório. Mortos? Todo mundo vai morrer um dia.
Desde o início, pastores mercadores da fé e aproveitadores da ignorância já venderam rezas milagrosas aos borbotões, já exorcizaram o vírus, intimaram-no a sair do país – e isso feito não como um pedido de ajuda a um deus todo poderoso e déspota, mas como ordem a um deus vertido em office boy de treisoitão na cintura. E se não é deus em pessoa, ciências milagrosas que despontam: por quanto tempo, sem qualquer base que não achismos, discutimos a cura instantânea e perfeita com cloroquina, ao invés de insistirmos no isolamento social? Com a ciência não messiânica demonstrando que a cloroquina não é tão milagrosa, busca-se um novo elixir: o vermífugo do astronauta não durou dois dias, agora temos o anticoagulante – os EUA já tiveram água sanitária. E não se trata de dizer que há um remédio com possibilidade de alta eficácia no tratamento contra o vírus, o anúncio é que a descoberta seria da cura pura e simples: um estalar de dedos, dois comprimidos e a vida normal de volta em quarenta e oito horas.
Como disse, esse tipo de pensamento só floresce com mais força agora, mas não é novidade. Lembro do professor de tapeçaria no Senai, que anunciava que sei lá que raiz curava tal doença, que havia um óculos que acabava com a miopia, mas que os médicos e as farmacêuticas ocultavam da população porque com a cura acabaria sua fonte de lucro – médicos, segundo ele, não são confiáveis. Claro, médicos prescrevem, muitas vezes, tratamentos longos, custosos (economicamente e mesmo de tempo e paciência), não raro querem alterar dietas, hábitos de vida do paciente – e comumente cometem erros médicos por displicência. A internet está cheia de diagnósticos irrefutáveis e curas infalíveis: médico para quê? Perda de tempo (e tempo é dinheiro!). Que venha o novo emplastro!
Das religiões, os exemplos são ostensivos, desnecessários de serem elencados. Mesmo em certas camadas da classe média dita progressista e ilustrada abundam crenças pseudoreligiosas (ou seriam pseudocrenças religiosas) de puro pensamento mágico: coaching quântico, animal ancestral, vidas passadas, astrologia, reiki e outras coisas do tipo. Porém, a “boa” religião, aquela que não se utiliza da boa-fé alheia para enriquecer e/ou acumular poder (e não me refiro apenas a seitas cristãs), também ela trabalha com o pensamento mágico, e se souber seu papel, serve justo para canalizar essa necessidade, assim como para conformar a pessoa à sua insuperável ignorância, por mais conhecimento que adquira (neste ponto, lembro sempre que me decidi ateu e parei com intermináveis discussões sobre deus ao ler um artigo do Frei Betto, em que ele pontuava que fé e conhecimento são duas áreas separadas, sem correlação). Há também a pseudociência – e nem falo dos sites de internet, e sim dos charlatões com PhD, mesmo: antes de Didier Raoult e o milagre da cloroquina, tivemos Lair Ribeiro acabando com o câncer de Marcelo Rezende sem quimioterapia (dizem que depois de morto, a doença estancou).
A espera do milagre pela ciência, se em parte se dá pela nossa subjetivação ainda fortemente influenciada pelo pensamento religioso – em que a necessidade de crer é imperativo, duvidar (sem ser em nome de outra crença) seria o inferno na Terra -, em outra é fruto da própria omissão das ciências e da academia em favor um ensino mais amplo e mais robusto da ciência, seus pressupostos, suas bases. O que temos é a apresentação, seja no ensino básico, seja na imprensa, de uma vulgata científica que apela à crença, a vulgarização extremamente rasa e rasteira de resultados ou, pior, de possíveis resultados. Para o vulgo, a ciência é apenas outra crença e os métodos de uma pesquisa exitosa não diferem em muito de uma boa reza: não adianta culpar o ignorante se quem tem o conhecimento e a possibilidade de instruí-lo é negligente ao repassá-lo. No cinema, uma boa caricatura de como a ciência é chega ciência aos grande público, de como são vistos os cientistas, está num filme dos seus primórdios: Viagem à Lua, do Georges Meliès, de 1902. Nele, homens com conhecimentos vindo da tradição (ao estilo da escolástica), vestidos em túnicas de magos, que fazem mágicas (como transformar as lunetas em banquetas) e tem ideias mirabolantes (como viajar à lua)! E só na hora de se apresentarem fora de seu círculo é que vestem fato completo, para ganhar a impressão de pessoas sérias e sisudas.


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