Não é agradável redigir obituário político de ninguém. É, na verdade, uma tarefa inglória, triste, de pesar. Quando um político morre, em geral, presta-se condolências à família, destaca-se o legado – concordando-se ou não com ele – e respeita-se o último suspiro de alguém, que bem ou mal, viveu o seu tempo.
O Brasil está em um momento especial para enterrar os seus mortos. É uma questão geracional, não ideológica. E também não é em função da ascensão do fascismo contemporâneo brasileiro, encarnado na vitória eleitoral discutível – porque rodeada de suspeitas de fraude – de Jair Bolsonaro.
Nossa realidade coletiva de despedida de um passado que não existe mais tampouco tem a ver com o fim da democracia, marcado pelo golpe de 2016, tão bem executado por Michel Temer – onde ele está? – PSDB, Aécio Neves e Eduardo Cunha.
A democracia já acabou em outros momentos. Quando a democracia acaba, ela acaba para voltar. São os processos igualmente naturais que incrustam metaforicamente a história de vida própria.
Todo esse processo golpista que subjaz ao DNA das elites brasileiras só vai fortalecer ainda mais o discurso e a mobilização política dos segmentos progressistas, bons de luta, amantes do embate franco e direto que caracterizam tanto a conquista democrática dos espaços de poder legítimos.
Traduzindo: quem morre simbolicamente é o PSDB – que se tornou um partido nanico. Mas há uma geração inteira de políticos do passado que não morre simbolicamente. Morre definitivamente.
Ainda não inventaram o elixir da imortalidade. E, à medida que o tempo passa, vamos nos dando conta disso, vendo amigos indo embora de maneira cada vez mais acelerada. Deveria, a rigor, ser uma experiência bonita essa despedida baseada em missão cumprida e em vidas vividas intensamente.
Ninguém pode durar para sempre. Os políticos que marcaram tanto os anos 80 e 90 vão, aos poucos, deixando a cena e mergulhando no esquecimento.
A única exceção nesse rol – para o eterno inferno astral dos maus perdedores de plantão – atende pelo nome de Luiz Inácio Lula da Silva. Ele, como todos sabem, além de ser hors-concours, é mais jovem que seus adversários sanguinolentos. Não bastasse, em vida ele já é um protagonista imortalizado pela história e pelo povo que lhe dedicou mais de 280 milhões de votos ao longo de 40 anos de vida pública.
Paulo Maluf, Fernando Henrique Cardoso, José Serra, José Sarney, e tantos outros gloriosos agentes do mercado financeiro que se locupletaram com o poder, caminham para suas respectivas notas de rodapé, plenas da mais profunda dicção panegírica já conquistada em vida coadjuvante. Merecem o nosso respeito e um adeus sincero.
O que retorce um pouco essa realidade geracional são os fenômenos precoces de despedidas políticas, essas sim, investidas de deterioração do sentido, não do corpo.
É absolutamente fascinante acompanhar o suicídio calculado e convicto de um dos políticos mais promissores de seu tempo que chegaram a roçar o cargo máximo do país.
A cada fala de Ciro Gomes, estala um sentido de comiseração por alguém que decidiu mergulhar de cabeça em um riacho vazio, cujas pequenas pedras roliças sequer rolariam de desgosto.
Trata-se de um relato de caso a ser devidamente investigado pelas gerações futuras de pesquisadores da psicologia social e política.
O coronelismo encomiástico de Ciro, tão característico da cultura popular do século 19, já é, em si, uma nota folclórica de grande interesse sociológico. Ver um político em pleno ano 19 do século 21 destilar autoelogios sequenciais em frente às câmeras de TV e em frente a jornalistas embasbacados com tanta babaquice é uma experiência única. Prazerosa, no limite – para quem tem fetiches exóticos relacionados à linguagem humana e suas disfunções.
Mas, é a vida. Ciro é como um gato insaciável. Já morreu sete vezes e quer mais. A cada palavra ‘dona’ que sai daquela indefectível máquina verborrágica, fica cravado na história o volume de misoginia e machismo embutido em sua psicologia rudimentar de macho-alfa-coronel. É uma “parada”, dissecar o discurso cirista. Exige estômago de pesquisador sênior.
A predileção – em tempo – de atacar mulheres é uma espécie de ‘coqueluche’ retrô dos hobbies masculinizantes. Ciro baba ódio e ressentimento quando fala de Dilma Rousseff e regurgita recalques múltiplos quando ataca Gleisi Hoffmann.
Aliás, a presidenta do PT deu uma resposta tão bem dada ao Ciro, que certamente ele não teve tempo de anotar a placa. Gleisi disse: “basta de despeito. Quer liderar, lidere.” Sutil como uma onça.
A gente se diverte. Ciro mal calcula a piracema de contradições que ronda a sua verve maníaco-suicida. Ele conferira legitimidade a Maduro e à Venezuela em plena campanha eleitoral para depois atacar Gleisi por sua visita à recondução do presidente eleito da Venezuela ao cargo.
Ciro foi se espremendo ele mesmo. Virou ‘suco’. Suco de Ciro. Ele defende diálogo com Bolsonaro, deseja sorte ao “presidente”, ‘piloto do avião’ (que metáfora boa, hein), amarga a memória de sua fuga do segundo turno, agoniza com suas teses economicistas de gabinete (decoradas como um cântico fanático) e atravessa todo um repertório de violência retórica, de insulto à integrantes do MBL a considerações infelizes sobre práticas de acasalamento coloniais.
É um assombro.
Quem poderia controlar uma psicologia dessas? Marqueteiros? Psicólogos? Psicanalistas?
Só se for o Analista de Bagé, profissional do joelhaço imortalizado pelo magnífico Luís Fernando Veríssimo.
Ciro tem minha solidariedade. Nós pesquisadores nos apegamos aos sujeitos pesquisados. Eles nos são valiosos. Ele confere alguma graça à nossa cena política tão desgraçada neste momento inglório.
Admitamos: sempre teremos um Ciro Gomes a nos divertir quando tudo parecer impossível.
Ele pareia com Bolsonaro como atração bizarra no circo dos horrores que se tornou o debate público brasileiro. Ele insiste. Deixemo-lo.
Enquanto isso, uma oposição ressurge forte, assertiva e solta para produzir a crítica consistente de um governo que também derreteu antes da hora.
Como se diz nas encruzilhadas espirituais mundo afora: os cães ladram e a caravana passa.
Gustavo Conde é linguista, colunista do 247 e apresentador do Programa Pocket Show da Resistência Democrática pela TV 247.
Fonte: Contexto Livre
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