Os 500 mil brasileiros esperados na posse do capitão de extrema-direita não apareceram. Muito menos gente presenciou a cerimônia de um presidente que promete um retrocesso sem precedentes. Quem escapou foi ao menos poupado de discursos rasteiros, mas cheio de significados.
Destruição do ensino livre e desimpedido, saudação ao obscurantismo, combate ao socialismo vigente (?), ataque ao politicamente correto (entenda-se, ao respeito à diversidade e minorias), sangue dos adversários na bandeira, luta contra a corrupção (menos a do Queiroz, o laranja da “famiglia”), faxina ideológica (desde que não seja a da extrema-direita), distribuição indiscriminada de armas, política externa de status colonial.
Termos como social, combate à miséria, defesa dos direitos da maioria assalariada, das minorias, a tragédia do desemprego galopante, o escândalo da desigualdade de renda –nada disso ocupou espaço relevante nos lacônicos pronunciamentos do militar presidente. Pudera: na visão do novo governo, isso é tralha politicamente correta que precisa ser liquidada.
Não por acaso, uma das primeiras providências foi colocar a FUNAI sob o guarda-chuva do ministério do agronegócio, inimigo de morte das reservas indígenas. Simbólico: é como se o Brasil estivesse retroagindo mais de 500 anos e devolvendo o Brasil aos colonizadores portugueses que massacraram os nativos para se estabelecer por aqui. Mudaram os algozes; o sentido, porém, é o mesmo. E é só o começo.
Nos Estados alinhados com a extrema-direita, a toada é a mesma. Em São Paulo, o ano começa com aumentos de tarifas de transporte. Um secretário-chave, Gilberto Kassab, assume pedindo licença do cargo para escapar do xadrez. Assim como na posse do capo da “famiglia”, o trabalho da imprensa está sendo cerceado. Uma gestão que proíbe maçãs, confina profissionais como gado e ameaça jornalistas com snipers diz bem a que veio.
Parece má vontade. “Ora, Bolsonaro mal tomou posse”, esbravejam colunistas subservientes e a imprensa oficial. Fazem o seu papel, vergonhoso, mas fazem. Numa visão complacente, esta gente deixa o cérebro na portaria ao passar pela catraca e retoma o que sobrou ao retornar para casa –isso quando ainda há neurônios a funcionar.
A hipótese do “benefício da dúvida” quanto ao futuro valeria caso houvesse alguma inflexão no discurso e objetivos deste grupo que assumiu o país. Mas não. Com outras palavras, Bolsonaro reafirmou em alto e bom som que pretende implantar uma “ditadura civil-militar”, com um gabinete tingido de verde-oliva e civis obedientes a uma cartilha que já afundou o Chile, destrói a Argentina e incinera o antes festejado Macron na França.
Juras de defesa da Constituição em cerimônias protocolares só podem enganar os escrivães do Congresso. São pagos para isso. Acresce que a Carta de 1988 vem sendo esmigalhada desde o golpe de 2016. Não será agora que será ressuscitada. Ao contrário. Pelo cheiro da brilhantina que engoma a cabelereira do presidente do STF, será ainda mais pisoteada.
O governo Bolsonaro e sua “famiglia” devem ser tratados como são: inimigos da democracia, um retrocesso de corte neo-fascista em todos os sentidos a quem cabe combater sem tréguas nem clemência, sem que se precise a recorrer às atitudes trogloditas dos bolsonaristas. Agir como se tudo fosse “normal” é ser cúmplice de um dos momentos mais tenebrosos da história do Brasil.
Ricardo Melo é jornalista, presidiu a EBC e integra o Jornalistas pela Democracia.
Fonte: CONTEXTO LIVRE
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