Nesta entrevista, a antropóloga Maria Emilia Pacheco, da secretaria executiva da Articulação Nacional de Agroecologia e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, fala sobre a importância do encontro para a construção da resistência aos retrocessos que têm ameaçado a agricultura familiar e as políticas públicas de apoio à agroecologia, e discute o papel da agroecologia para a garantia do direito à alimentação previsto na Constituição, que completa 30 anos em 2018.
O 4º ENA acontece no ano em que se completa 30 anos da Constituição. O que ela diz sobre o direito à alimentação?
A Constituição em 1988 não tinha ainda o direito à alimentação como um dos seus direitos sociais. Essa foi a conquista de uma mobilização que ocorreu mais tarde, em 2010, quando o direito à alimentação foi incluído no artigo 6º pela Emenda Constitucional 64. Isso parece algo muito curioso, porque falar de alimentação é falar da vida, e talvez exatamente por isso os parlamentares na época acharam que não era necessário incluir. Mas estar inscrito lá tem um significado simbólico, um significado político profundo. Foi nesse processo de mobilização que se deu após a Constituição, e sobretudo a partir dos anos 2000, que fomos construindo uma visão sobre soberania alimentar, sobre segurança alimentar e nutricional que resultou em uma Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
A agroecologia apareceu como nessa discussão?
O debate da política não trazia propriamente a tradução da palavra agroecologia, mas fala em uma de suas diretrizes de produção em bases sustentáveis, fala da defesa de direitos e do direito à alimentação das populações tradicionais. Isso é muito significativo porque esse movimento pela soberania alimentar e pela segurança alimentar e nutricional ajudou a impulsionar também o debate que vinha sendo feito na Articulação Nacional de Agroecologia para chegarmos a uma Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica [aprovada em 2012]. A compreensão articulada dessas duas políticas é fundamental. A agroecologia tem como um de seus objetivos exatamente a transformação dos sistemas alimentares, uma alimentação de qualidade que respeite as culturas alimentares. Isso é parte também do nosso debate da política de segurança alimentar e nutricional.
Como vem se efetivando o direito à alimentação?
Não tivemos conquistas estruturantes no Brasil. Nunca tivemos efetivamente uma democratização do acesso à terra, não temos historicamente uma garantia dos direitos territoriais. Não rompemos no Brasil com uma visão desenvolvimentista, que só instrumentaliza um Estado agroexportador e de exploração dos bens da natureza. Mas o processo de desconstrução, de violação de direitos e de desmonte das políticas é muito grave e muito acelerado nesse momento.
Quais os principais aspectos desse desmonte que você destacaria como obstáculos à obtenção do direito à alimentação?
O primeiro deles é o PL do veneno [PL 6299/02], essa arquitetura feita com o apoio da bancada ruralista e seguramente com lobby das grandes corporações, com o apoio da Embrapa. Mas é muito importante dizer da posição extremamente importante da Fiocruz, do Instituto Nacional do Câncer, entre outras. Talvez essa seja uma das lutas que mais agregue diferentes atores hoje no Brasil. Temos segmentos do Ministério Público, agora a SBPC [Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência] se aproximou. É uma das questões que afeta profundamente o nosso direito à alimentação, porque quando nós falamos do direito humano a alimentação não é só ter o que comer, é ter um alimento de qualidade. O altíssimo índice de poluição do solo, das águas, dos alimentos, nos coloca muito distantes da perspectiva de soberania alimentar. É um verdadeiro desmonte que estão propondo em relação a uma legislação de agrotóxico que vem de 1989. Também querem tirar o símbolo "T" de transgênico dos alimentos. São questões extremamente graves, e estão em debate nesse momento.
Mas também quero dizer que as mudanças que estão ocorrendo na legislação ambiental e fundiária é gravíssima. O arcabouço legal que está sendo modificado significa colocar para o mercado uma quantidade significativa de terra pública, em razão da mudança da legislação sobre a venda de terras para estrangeiro, e agora mais recentemente, da lei que está sendo chamada de Lei da Grilagem, a 13.465/17, que pode provocar uma desestruturação dos assentamentos da reforma agrária, que foi o mínimo que nós conseguimos no longo tempo da nossa história. Quero insistir nisso: o Brasil nunca fez uma verdadeira reforma agrária. Os Estados Unidos editaram uma lei que favorecia que os ex-escravos tivessem acesso à terra. Aqui foi o contrário. A Lei de Terras de 1850 cerceou o direito à terra aos ex-escravos, que só poderiam acessá-la pela compra. Como é que iriam ter essa terra? Nesse momento há um aguçamento desse antagonismo. É outra negação da Constituição brasileira, que fala da função social da propriedade, sob vários pontos de vista, ambiental, da legislação trabalhista... E é isso tudo que está sendo desconstruído.
Sem contar que há hoje no Congresso a Proposta de Emenda Constitucional [PEC] 215, que retira o dever do Executivo de titular as terras dos povos indígenas e transfere para o Congresso. Imagina o que vai acontecer! Outra questão associada a esse arcabouço é a lei que regulamenta o domínio da terra para as comunidades quilombolas. Isso está ainda em questão porque a PEC 215 também se refere a comunidades quilombolas, mas houve uma vitória parcial recentemente no Supremo Tribunal Federal, onde havia uma proposta de Ação Direita de Inconstitucionalidade em relação a essa lei e o STF julgou a ação improcedente.
E, finalmente, temos do ponto de vista da soberania alimentar uma disputa muito grande sobre o que é a qualidade do alimento. Cada vez há mais evidências de que o consumo crescente dos produtos alimentícios ultra processados tem gerado as doenças crônicas não-transmissíveis, o aumento da obesidade no país, o sobrepeso. Isso também tem relação com a soberania alimentar porque ao mesmo tempo em que os camponeses têm dificuldade de provar que seus alimentos são de qualidade, por estarem submetidos às normas de vigilância sanitária do passado também, que só recentemente começou a mudar, há uma pressão enorme da indústria alimentícia de não querer aceitar a rotulagem nutricional nessa perspectiva que analisa a nutrição do ponto de vista do impacto para a saúde. Há uma proposta de uma rotulagem frontal, nos moldes do fumo, de advertência sobre os riscos à saúde dos alimentos ultraprocessados, e há uma pressão das corporações de produção de alimentos, contra.
No final do ano passado a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura fez um alerta sobre o risco de o país voltar ao Mapa da Fome da ONU. De que forma essa conjuntura de retrocessos é determinante para esse cenário?
Isso é gravíssimo. Nós tivemos um momento histórico no país extremamente importante que foi fruto de uma conjugação de fatores: a valorização do salário mínimo, o aumento da taxa de ocupação, e também os programas que foram construídos, como o Bolsa Família,o Programa Nacional de Alimentação Escolar, o Programa de Aquisição de Alimentos, o programa Um Milhão de Cisternas. Essas iniciativas tiveram uma importância fundamental nesse contexto que nos levou a sair do Mapa da Fome. E estão todas ameaçadas. A Emenda Constitucional 95, que limita o gastos públicos por 20 anos, é uma medida antipovo. Não tem similar nos países que estão passando por ajustes fiscais. Isso tem um impacto enorme. Isso sem contar a desestruturação da legislação trabalhista que tivemos, a redução de cerca de um milhão de famílias que tinham acesso ao Bolsa Família. O Programa de Alimentação Escolar continua, embora estejamos longe ainda de dizer que todo país está comprando 30% da agricultura familiar camponesa.
O certo é que nós estamos caminhando com muita indignidade pra voltar ao Mapa da Fome. O que é grave, porque a fome no Brasil convive com a desnutrição e até com a obesidade. Então nós temos um quadro extremamente complexo que precisa ser enfrentado. Nós precisamos levantar como nação, pra não permitir que a fome volte ao país.
Gostaria que você falasse sobre essa crise no abastecimento dos combustíveis e o risco de insegurança alimentar que ela gerou, com o descarte de alimentos que estragaram por não terem sido entregues, desabastecimento e inflação nos preços. O que ela evidencia sobre a insustentabilidade desse modelo de produção e distribuição de alimentos e o que isso coloca como espaço para agroecologia se apresentar como alternativa?
O ENA está sendo realizado exatamente no momento, ao meu ver, em que se tornam mais visíveis essas contradições. Nós nos indagamos se era possível, se cabia manter o ENA nesse contexto, e chegamos à conclusão que sim. Ficou bem claro como nós somos uma economia dependente dos insumos fósseis. Na agroecologia nós defendemos exatamente um outro paradigma de relação com a natureza. E por isso que a agroecologia tem todas as condições de ganhar mais visibilidade nesse momento. Temos certeza que conseguimos responder que uma produção em bases agroecológicas, é capaz sim de alimentar o mundo. Porque o mundo continua sendo alimentado pelos camponeses e camponesas. É preciso dizer isso de forma muito clara. E o desabastecimento também precisa ser mais bem analisado. Nós tivemos algumas notícias de que no interior, onde há os chamados circuito de proximidade, entre a produção da agricultura familiar e os lugares de abastecimento, não tem esse desabastecimento. O Brasil continua se regendo por essa política agroexportadora e o agronegócio continua insistindo que isso é fundamental para alimentar a população. Nós temos que reverter isso. Esse momento da nossa história ao meu ver contribui pra reverter, porque eu acredito que tem uma repolitização de algumas questões, tem um chamamento para nós para dizer que não é possível o país continuar com o passeio dos alimentos.
Nós não temos no Brasil só uma concentração de terra; também temos uma especialização de produção, que é grave. O arroz foi produzido no Maranhão até a década de 1980. Hoje está mais concentrado no Sul do Brasil. E isso é uma ameaça para a soberania alimentar. Nós precisamos ter a garantia de mais variedades das espécies, uma descentralização dos alimentos. Esse desabastecimento chama atenção pra isso. Então, acho que esse momento indica também uma atenção que nós precisamos ter com os vários segmentos da classe trabalhadora, com suas heterogeneidades nas suas formas de organização, de luta. Ter essa capacidade de escuta, de perceber onde está a manifestação de insatisfação do povo, é fundamental.
Como entende o papel do movimento agroecológico nesse processo?
O lema do 4º ENA fala de democracia, porque ela está em questão no Brasil. Não podemos dizer que estamos vivendo um momento pleno de democracia. É verdade que a democracia é permeada de contradições, mas nesse momento, principalmente após o golpe, nós vivemos uma situação muito grave de violação de direitos, desmonte de políticas e ascensão de contravalores. Por isso que é no ENA também queremos acentuar valores. Agroecologia significa impulsionar outro sistema agroalimentar, outra maneira de produzir e de consumir, por isso que essa relação com a segurança alimentar e nutricional é essencial, mas queremos chamar atenção também para a mudança das relações sociais.
Por isso que defendemos valores como da emancipação das mulheres, somos contra o racismo. Nós temos inúmeros exemplos de racismo institucional nas políticas, quando não incorporam o direito a igualdade do ponto de vista racial. Precisamos nos posicionar também contra o etnocídio. Os povos indígenas estão sendo dizimados no Brasil. É preciso entender que os povos indígenas, as comunidades quilombolas, as comunidades tradicionais não representam um passado; representam o presente e o futuro, porque se nós temos uma enorme agrobiodiversidade no país, diversidade enorme de espécies, de variedades de sementes, é porque temos uma história. Quem domesticava e continua domesticando os bens da natureza e transformando em novos alimentos são essas populações, que chamam nossa atenção para uma outra perspectiva. Nós temos que conhecer melhor como são os modos de vida dessas populações e respeitá-los. A Constituição brasileira chama atenção que nós estamos em um país poliétnico. Nesse momento isso está em questão ao meu ver. Assim como outros artigos da Constituição brasileira, como o artigo 225, que fala do meio ambiente como um bem de uso comum. O que estamos vendo é um processo devastador de privatização da natureza. Cláusulas pétreas da Constituição brasileira estão sendo desrespeitadas e isso é um atentado à democracia. Com o Encontro Nacional de Agroecologia nós queremos recolocar, politizar essas questões e entender um outro projeto de nação precisa dialogar com os valores e princípios que a agroecologia propõe. A agroecologia não é uma resposta apenas do ponto de vista tecnológico, que nos fala como devemos produzir para garantir um alimento saudável. A agroecologia também chama atenção para nosso sociobiodiversidade: todas essas identidades que compõe o povo brasileiro. Chama atenção também para rompermos com o machismo, o patriarcado, o racismo. É uma verdadeira plataforma que por isso mesmo traz uma pujança de diálogo com outras redes e outras plataformas. Construir uma unidade maior em outros movimentos é essencial nesse momento.
*Publicado coriginalmente na EPSJV/Fiocruz
Fonte: Carta Maior
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