domingo, 10 de fevereiro de 2019

Código Moro atribui ao MPF o poder de celebrar tratados

Os pontos cegos no que ficou conhecido como Código Moro, propostas não tão evidentes, embora igualmente graves

Desde que Sérgio Moro tornou público o Projeto de Lei Anticrime, no dia 04 de fevereiro, o pacote passou a ser duramente criticado por especialistas da área criminal que identificam o sentido essencialmente punitivista da proposta geral.

Dos dezenove capítulos apresentados, alguns apartados são os favoritos da crítica em razão do evidente confronto constitucional. O mais polêmico de todos trata da execução provisória da pena antes do trânsito em julgado, contrapondo-se diretamente à garantia constitucional da presunção de inocência. Outras duas propostas escandalosas dizem respeito à legítima defesa – autorizando, na prática, o ataque preventivo da polícia – e à reformulação do crime de resistência, mudanças que ampliam o potencial mortífero dos agentes e que dão forma jurídica às promessas de campanha de Jair Bolsonaro.

Mas há pontos cegos no que ficou conhecido como Código Moro, propostas não tão evidentes, embora igualmente graves. Transversal ao populismo da violência penal, está a legalização de atos e medidas excepcionais sob o pretexto do combate à corrupção. Lendo o texto com atenção, nos deparamos com situações hipotéticas já praticadas pelo direito penal de Curitiba, já realizadas nas inovações arbitrárias e ilegais da Lava-jato. Nesse sentido, o pacote serve como freio de arrumação para legalizar atos pretéritos e futuros de procuradores e juízes fora-da-lei.

Quero chamar a atenção para um desses pontos cegos que passou relativamente despercebido até o momento: para combater o terrorismo e os crimes transnacionais, a proposta de Moro visa atribuir ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal, autonomia plena para firmar acordos investigativos junto a entidades congêneres, ajustes livres de formalidades especiais e de qualquer controle estatal quanto ao compartilhamento de provas e informações.

Esta proposta aparece no final do projeto, entremeando o capítulo XVIII – Medidas para aprimorar a investigação de crimes – e vem como sugestão de alteração para o artigo 3º da Lei nº 12.850/2013, conhecida como Lei das Organizações Criminosas. Cito:

Proposta de Lei Anticrime

XVIII – Medidas para aprimorar a investigação de crimes

Mudanças na Lei nº 12.850/2013:

“Art. 3º Em qualquer fase da investigação ou da persecução penal de infrações penais praticadas por organizações criminosas, de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos ou de infrações penais conexas, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova:

………………………………………………………………………………………………………………….” (NR)

“Art. 3º-A. O Ministério Público Federal e a Polícia Federal poderão firmar acordos ou convênios com congêneres estrangeiros para constituir equipes conjuntas de investigação para a apuração de crimes de terrorismo, crimes transnacionais ou crimes cometidos por organizações criminosas internacionais
  • 1º Respeitadas as suas atribuições e competências, outros órgãos federais e entes públicos estaduais poderão compor as equipes conjuntas de investigação.
  • 2º O compartilhamento ou a transferência de provas no âmbito das equipes conjuntas de investigação devidamente constituídas dispensam formalização ou autenticação especiais, sendo exigida apenas a demonstração da cadeia de custódia.
  • 3º Para a constituição de equipes conjuntas de investigação, não se exige a previsão em tratados.
  • 4º A constituição e o funcionamento das equipes conjuntas de investigação serão regulamentadas por meio de decreto. ” (NR)
(Grifos nossos)

Como se pode ler acima, o projeto prevê dispensa de formalizações ou autenticações especiais para o compartilhamento de provas e exclui a necessidade de tratados para regular a constituição e o funcionamento das equipes conjuntas para apuração dos crimes, sendo estas reguladas por meio de decreto.

Fazendo remissão à Lei nº 12.850, a começar pelo próprio caput, a proposta em nada faz referência ao originalmente definido pelo artigo 3º, sendo matéria exógena que, como um Cavalo de Troia, aproveita-se do populismo anticorrupção para esgueirar-se e consolidar um poder quase ilimitado ao Ministério Público, associado ou não a outros entes públicos.

Quais crimes justificariam um tal nível de autonomia e independência do MPF? O Código Moro responde: terrorismo, crimes transnacionais e crimes cometidos por organizações criminosas. Ora, é bastante óbvio que tais condutas criminosas gozam de um imenso grau de indeterminação e complexidade quanto aos agentes, condutas, ativos e redes, provocando efeitos igualmente transnacionais e que podem onerar os interesses e o patrimônio nacional.

Seria razoável pensar, não apenas em segurança pública, mas também em soberania e interesse nacional. Na prática, Sergio Moro propõe surrupiar competência exclusiva do Congresso Nacional em matéria de resolução sobre tratados/acordos/atos internacionais que possam acarretar encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional (artigo 49, I, CF/88) para dar ao MPF o direito de fazer acordos tipo fast track (referência à modalidade de acordos internacionais que dispensam aprovação legislativa).

E isso já vem acontecendo no âmbito da Lava-jato, quando entidades americanas, com a ajuda do Ministério Público, coletaram os documentos que necessitavam para acionar as estatais brasileiras em ações bilionárias.

Recordemos que, no ano de 2015, quando o Procurador Geral da República era Rodrigo Janot, a imprensa noticiou, ainda que timidamente, a chegada de uma missão de investigadores norte-americanos, de grandes fundos de pensão assessorados por mega escritórios de advocacia, com o objetivo de arrecadar provas para instruir ações bilionárias contra a Petrobras e a Eletrobras. A missão foi a Curitiba, visitou Sérgio Moro, então juiz, e alguns procuradores que, por sua vez, visitaram os Estados Unidos (Comitiva formada pelo próprio Rodrigo Janot, Deltan Dallagnol e Carlos Fernando Lima, em fevereiro daquele ano), mas as idas e vindas dos servidores públicos brasileiros aos Estados Unidos, bem como das agências estrangeiras, sempre estiveram cercadas por grande sigilo para não levantar suspeitas diante da falta de formalidade no intercâmbio de provas e documentos.

No último dia 30 de janeiro, tivemos o desfecho dessa colaboração. Com o objetivo de encerrar as investigações contra a Petrobras, a estatal, por intermédio do Ministério Publico Federal, fechou um Acordo de Assunção de Compromissos no valor de US$ 682,6 milhões (2,75 bilhões de reais), tendo confessado responsabilidade por danos alegados por terceiros junto ao Departamento de Justiça (DoJ) e a Securities & Exchange Commission (SEC), dos Estados Unidos. A empresa estatal assumiu, perante entidades de direito público e privado daquele país, que falhou dolosamente ao implementar controles internos contábeis e financeiros da companhia com o fim de facilitar o pagamento de propinas a políticos e a partidos políticos brasileiros, assumindo o montante de 80% das penalidades ajustadas, mesmo com as investigações da Lava-jato ainda em curso.

E esta não foi a primeira vez que o MPF intermediou acordos bilionários com a premissa do combate à corrupção, entendido aqui como crime transnacional. Em junho de 2018, a Petrobras firmou outro acordo com acionistas norte-americanos para encerrar uma class action (espécie de ação coletiva), comprometendo-se ao pagamento de US$ 853 milhões em indenizações.

Eis aqui um exemplo eloquente do que significa “acarretar encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”. A imprensa noticia, até o momento, o prejuízo total de 10 bilhões de reais em ações indenizatórias intermediadas pelo MPF, valor seis vezes superior ao que a estatal já recebeu da Lava-jato.

Mas o mais exasperante nessa sorrateira artimanha é a naturalização/legalização de condutas de agentes públicos que deveriam receber, por parte do Estado brasileiro, fiscalização, acompanhamento e, sendo o caso, responsabilização. Ou alguém acredita que, um dia, o Brasil receberá a visita do congênere United States Attorney General, o Procurador-Geral dos Estados Unidos em pessoa, a contar segredos processuais para instruir processos bilionários contra empresas americanas?!

Um dia, quando voltar a prevalecer a legalidade democrática, a Lava-jato deverá ser objeto de escrutínio público por incontáveis motivos: pelos danos econômicos às estatais, às cadeias produtivas, aos empregos, aos nomes de políticos e partidos injustiçados em investigações seletivas, aos nomes de empresários, gerentes e funcionários públicos e privados enxovalhados e execrados antes do fim dos processos e, principalmente, por servir de exemplo punitivista que se espalha como uma praga a perseguir gestores públicos, líderes políticos e sociais, movimentos populares e todos aqueles que lutam pela democracia no país.

Por enquanto, nos cabe denunciar aos que apoiam a Lava-jato, incluindo militares que sustentam os protagonistas dessa farsa, que o Código Moro está mexendo com a competência constitucional do Congresso Nacional e atribuindo aos Young Urban Professional de Curitiba missões que subestimam a histórica e qualificada experiência dos diplomatas do Itamaraty e dos estrategistas das mais variadas formações, inclusive das Forças Armadas, colocando em risco os interesses nacionais.

Carol PronerDoutora em Direito Internacional, Membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)
No GGN
Fonte: http://www.contextolivre.com.br

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