Uma turba enfurecida de fãs da obra Sandman, do
quadrinista e escritor inglês de Neil Gaiman, criado para o selo Vertigo da DC,
gritam extremados e enfurecidos pela escolha do elenco para a adaptação dos
quadrinhos adultos cults dos anos 1980 e 1990.
Em um tuíte, um dos “fãs” questiona o autor: “Como
você pôde escolher uma atriz negra para uma importante personagem icônica e
branca?”.
A resposta de Gaiman não podia ser melhor:
“Se você
acha que os Perpétuos têm alguma raça ou forma humana específica, você não
entendeu alguma coisa em Sandman. Não se preocupe. Assista à série.”
Extremistas racistas sabem ler as palavras.
Conseguem fazer conexões com letras, vogais, consoantes e entender o sentido
literal das conexões fonéticas, mas pecam e são carentes de intelecto para a
função da interpretação que é fundamental quando não se está lendo livros
infantis escritos para bebês. Para literatura adulta, incluindo a obra de
Gaiman, é preciso cultura, vivência, empirismo, maturidade.
Ou pelo menos o mínimo de empatia, simpatia e
curiosidade sobre histórias ficcionais que falam da realidade, seja ela “real”
ou imaginária.
Capa
da primeira edição de Sandman, de Neil Gaiman, no Brasil, com arte de Dave
McKean
A IRMÃ MORTE
Recriação de um personagem noir antigo, Sandman
representou uma revolução nos quadrinhos do final dos anos 1980. Centrada no
personagem Dream, ou Morpheus, traduzido para Sonho em português, a série
original de cerca de 80 fascículos apresentou ao mundo a família peculiar dos
Perpétuos, seres imortais, quase deuses, que representam aspectos da vida
humana, todos com nomes começados com “D” em inglês: Dream, Death, Destiny,
Desire, Destruction, Despair e Delirium. Todos os textos são de Gaiman, mas
cada uma das sagas da série e as histórias paralelas são desenhadas por
artistas diferentes.
A Morte, um dos perpétuos e irmã de Sonho, nos
quadrinhos originais, tem, quase sempre, a pele branca, praticamente
translúcida e cabelos pretos e desgrenhados. Usa uma roupa preta em alusão às
roupas usadas pela geração gótica, punk e roqueira dos anos 80 e provavelmente
foi inspirada em Siouxsie Sioux, vocalista da banda Siouxsie and the Banshees.
Seu irmão, Morpheu ou Sonho, aprisionado em uma gaiola mística pela elite branca
ocultista de Londres no início da obra, foi inspirado no cantor andrógino de
rock gótico, Robert Smith, que tocou com os Siouxsie and the Banshees e depois
montou a banda The Cure, ícone da moda trash 80 e do movimento gay da época.
Movimentos são feitos através das épocas baseados
em contextos históricos. Aquilo que cada geração precisa na cultura pop é
produzido por mentes incríveis como a de Gaiman. Hoje o mundo precisa de
Perpétuos que tenham a cara das necessidades dessa geração. Não é o
progressismo que toma a obra. É a obviedade das escolhas. A Morte, por exemplo,
provavelmente será interpretada por Kirby Howell-Baptiste, que recentemente
recriou Anita em Cruella, outra personagem branca clássica da Disney e dona de
um dos Dálmatas da animação original 101 Dálmatas. Kirby é uma atriz preta.
E o que tem isso de importante para a narrativa da
obra que conta a trajetória de seres místicos, míticos, ficcionais e atemporais
que já encarnaram inúmeras formas humanas, animais e alienígenas desde o início
da criação do nosso mundo? Absolutamente nada.
Neil Gaiman nunca escreveu sobre pessoas brancas. O
autor de Sandman será adaptado pela Netflix depois de anos de negativas a
dezenas de convites dos maiores estúdios do mercado de cinema hollywoodiano, e
ficará com a produção executiva e direito de tomada de decisões exclusivas
sobre sua obra.
A
família imortal de Sonho na arte de Frank Quitely
Sandman nunca falou sobre a soberania de entidades
brancas sobre outros seres ou indivíduos. A obra literária em formato de
quadrinhos de Gaiman trata do efêmero e de relações humanas e não humanas.
Sandman fala de magia e da obscuridade da natureza do homem tendo como
contraponto seres que transcendem o entendimento infantil do ser humano sobre a
sua realidade. Os Perpétuos são deuses que passeiam entre nós. Não são
“somente” brancos, humanos, pretos, pardos, mecenas das artes ou asseclas
egípcios. Às vezes, são até felinos ou marcianos. Perpétuos são o Infinito. Não
há compreensão humana da obra que faça jus à sua essência. Só há a referência
cultural limitada de cada leitor.
SANDMAN. SUPERCALIFRAGILISTICOESPIALIDOSO.
Ler a o obra de Gaiman e entender sua importância é
uma obrigação de cada nerd e geek que pretenda bater no peito seu orgulho pela
cultura de entretenimento atual assim como entender que os quadrinhos de
Sandman são uma obra atemporal, assexuada e de forma alguma foi escrita com o
intuito de representar a cor da pele de qualquer leitor ou de seu autor. A obra
é repleta de personagens brancas, negras, jovens, velhas, gays, lésbicas,
trans…
O pseudo fã que acredita que é necessária a
integridade visual dos personagens com as referências originais dos anos 80
precisa urgentemente revisitar a obra para uma maior compreensão daquilo que
foi escrito assim como entender a grandiosidade humana inserida nos textos de
Neil Gaiman, que logo logo estarão imortalizados, mais uma vez, nessa que será
uma das maiores séries sobre quadrinhos adaptados para um streaming pela
gigante Netflix.
E como diria a irmã Morte, quando não há nada
importante a ser dito sobre algo, diga apenas,
“Supercalifragilisticoespialidoso”
Faz mais sentido que o seu preconceito e sua
ignorância.
Fonte: https://jornalistaslivres.org
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