Pelo
discurso, Bolsonaro ressignifica a realidade. E circunscreve o debate
Falas
aparentemente simplórias, muitas vezes desconexas, opiniões rasas sobre
assuntos complexos do Brasil e do mundo.
Assim
tem sido a estrutura das declarações do presidente eleito, Jair Bolsonaro.
Replicadas
pelos apoiadores, elas têm nos tomado energia, nos distraído e nos levado a
discussões aparentemente sem sentido, enquanto colaboram para ressignificar o
contexto social-político-econômico do Brasil.
Nesse
processo que se torna rotineiro, há uma retroalimentação que garante a
efetividade da ressignificação.
Vou
descrever um passo a passo do que acontece. Assim, fica mais fácil compreender
esses dois ”palavrões”.
Vamos
lá. De modo geral, um passo a passo da retroalimentação poderia ser
descrito assim:
1.
Bolsonaro, via redes sociais, solta uma declaração meio bombástica, meio sem
sentido, sobre um tema relevante.
2.
Os torpedos são sempre estruturas frasais básicas e elementares.
Frota,
Hasselman, para citar dois replicantes mais conhecidos, compartilham e comentam
as declarações, corroborando o que Bolsonaro falou. Sempre pelas redes
sociais.
3.
Sites de “notícias” alinhados a Bolsonaro replicam e exploram os conteúdos,
ajudando a disseminar.
4.Isso
cai nas redes do cidadão comum, que imediatamente passa a reproduzir e a
apoiar.
5.
A imprensa vai atrás para apurar a veracidade dos ditos.
A
máquina de disseminação de conteúdos estapafúrdios opera com capacidade máxima,
e essa rede de retroalimentação está em pleno funcionamento.
O
desmentido e/ou refutação dos absurdos, muitas vezes, se provam inócuos, uma
vez que os apoiadores estão interessados somente nas promessas inverossímeis do
mito-herói tupiniquim que vai livrar o Brasil da ameaça vermelha.
Observemos
dois exemplos recentes:
1.
Emprego/desemprego/Ministério do Trabalho
Bolsonaro
afirmou que metodologia usada pelo IBGE para cálculo do desemprego estava
errada, pois só considerava desemprego e não falava em emprego.
A
declaração suscitou ampla reação de pesquisadores e técnicos, que se
mobilizaram para explicar a expertise da metodologia e a confiabilidade dos
dados.
Naquele
momento já havia a semente para garantir o discurso em relação ao desemprego,
para justificar o fracasso no combate no futuro governo: não vamos mais falar
em desemprego, mas sim em emprego.
Isso
circulou amplamente pelas redes sociais.
2.
Mais médicos/governo brasileiro dando dinheiro a Cuba
Imediatamente
após a decisão do governo cubano de retirar os médicos do programa, em
retaliação às falas do presidente eleito, várias explicações começaram a
circular entre os apoiadores.
Uma
das principais foi a falácia de que Bolsonaro estava na verdade querendo acabar
com o “financiamento da ditadura cubana” pelo governo brasileiro, pois os
médicos ficavam apenas com parte do dinheiro fim.
Outra
explicação foi a de que os médicos brasileiros não vão aos rincões porque a
remuneração é baixa e eles não são valorizados.
Esses
dois exemplos ilustram como a retroalimentação funciona e é essencial para o
enquadramento do foco de um problema complexo, pautando até mesmo a mídia
corporativa (brasileira, com algumas poucas exceções).
Ainda
não se tem a dimensão do nível de profissionalismo por trás disso, mas é
evidente que não se trata de algo espontâneo ou desencadeado puramente pelos
seguidores de Bolsonaro.
Há
uma rede funcionando. Além disso, aspectos de fundo relacionados a esses dois
assuntos não aparecem na pauta.
Aspectos-chave
do discurso bolsonarista
A
formação desse discurso que se estrutura e se alimenta pelas redes sociais, com
Bolsonaro, tem três aspectos muito relevantes que a consolidam:
1.
Combustível: Para que o discurso se mantenha
vigoroso, é necessário um combustível para alimentar sua essência. E esse
combustível tem dois ingredientes.
Um
deles é o ódio, personificado pelo antipetismo, com várias menções ao PT e aos
“petistas”, sempre numa referência a corrupção, “roubalheira”, desvio de
dinheiro.
O
outro é a obsessão pela doutrinação ideológica, que é enxergada como um
fantasma, em todos os lugares, pelos bolsonaristas, personificada pela Escola
sem Partido.
2.
Elementos-chave: A todo o momento estarão aparecendo
nas declarações do presidente eleito: ideologia/doutrinação (que
aparece nas falas sobre escola sem partido, discussão das provas do Enem,
abordagem sobre sexo nas escolas), e ameaça marxista/comunista (nas
declarações sobre o Programa Mais Médicos, Cuba e nas declarações
sobre a bandeira voltar a ser verdade-amarela). E esses elementos passam a
fazer parte de um discurso cotidiano, do cidadão comum que apoiou Bolsonaro.
3.
Nível elementar das declarações:
a quase totalidade das declarações tem uma estrutura conceitual primária,
básica, com grau zero de complexidade.
Muitas
vezes, o sentido lógico também se perde. E esse aspecto é fundamental para que
seja amplamente apropriado e passe a integrar o discurso do cotidiano.
Mentiras
e distração
O
pesquisador norte-americano George Lakoff tem se dedicado recentemente a
estudar o discurso do presidente Donald Trump, numa abordagem que pode nos
interessar muito de perto.
Ele
salienta, por exemplo, que se os jornalistas gastam tempo e energia tentando
comprovar que mentiras já conhecidas são, de fato, falácias, eles estão cedendo
o controle do fluxo de notícias a Trump.
Diz Lakoff: “O que os repórteres
continuam a perder é a estratégia por trás das grandes mentiras: desviar a
atenção das grandes verdades. A técnica é simples: criar controvérsia e
confusão em torno de temas politicamente carregados para alimentar sua
base conservadora e distrair de temas que prejudicam Trump”.
Provavelmente
essa análise valha também para nós.
Desde
o período que antecedeu a campanha eleitoral deste ano, temos visto opositores,
analistas, mídia sendo atropelados por avalanches de fakes news e torpedos
bombásticos disseminados por Bolsonaro e por grupos ligados a ele.
Esses
conteúdos estão pautando o debate e dominando a cena, deixando sem ação efetiva
os outros atores, que se limitam a desmentir falsas polêmicas e a refletir em
torno dessas falácias.
Durante
a campanha, nada de efetivo em relação aos problemas graves do país foi discutido.
Agora, o mesmo está ocorrendo em relação à montagem do governo Bolsonaro.
Novamente,
a falta de propostas e a incompetência da equipe do presidente eleito estão
sendo encobertas por torpedos mentirosos.
Está
em curso, portanto, uma bem-sucedida estratégia de “distração” pelo discurso
verborrágico com conotação doutrinária.
Propositalmente,
com declarações aparentemente sem sentido, Bolsonaro encobre a precariedade das
propostas para a política econômica, a política externa, as políticas sociais.
Com
declarações bombásticas, cria cenas, empolga os seguidores e foge ao debate das
grandes questões que preocupam o país.
Sua
estratégia, sem dúvida, passa pela manutenção de uma situação de caos e
desordem.
“Mitos”,
mesmo os tupiniquins, precisam disso pra se mostrarem úteis aos inocentes que
neles acreditam.
Fonte: contextolivre.com.br
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