sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Pesquisadora mostra como o discurso de Bolsonaro usa distrações para enganar o público

Pelo discurso, Bolsonaro ressignifica a realidade. E circunscreve o debate

Falas aparentemente simplórias, muitas vezes desconexas, opiniões rasas sobre assuntos complexos do Brasil e do mundo.

Assim tem sido a estrutura das declarações do presidente eleito, Jair Bolsonaro.

Replicadas pelos apoiadores, elas têm nos tomado energia, nos distraído e nos levado a discussões aparentemente sem sentido, enquanto colaboram para ressignificar o contexto social-político-econômico do Brasil.

Nesse processo que se torna rotineiro, há uma retroalimentação que garante a efetividade da ressignificação.

Vou descrever um passo a passo do que acontece. Assim, fica mais fácil compreender esses dois ”palavrões”.

Vamos lá.  De modo geral, um passo a passo da retroalimentação poderia ser descrito assim:

1. Bolsonaro, via redes sociais, solta uma declaração meio bombástica, meio sem sentido, sobre um tema relevante.

2. Os torpedos são sempre estruturas frasais básicas e elementares.

Frota, Hasselman, para citar dois replicantes mais conhecidos, compartilham e comentam as declarações, corroborando o que Bolsonaro falou.  Sempre pelas redes sociais.

3. Sites de “notícias” alinhados a Bolsonaro replicam e exploram os conteúdos, ajudando a disseminar.

4.Isso cai nas redes do cidadão comum, que imediatamente passa a reproduzir e a apoiar.

5. A imprensa vai atrás para apurar a veracidade dos ditos.

A máquina de disseminação de conteúdos estapafúrdios opera com capacidade máxima, e essa rede de retroalimentação está em pleno funcionamento.

O desmentido e/ou refutação dos absurdos, muitas vezes, se provam inócuos, uma vez que os apoiadores estão interessados somente nas promessas inverossímeis do mito-herói tupiniquim que vai livrar o Brasil da ameaça vermelha.

Observemos dois exemplos recentes:

1. Emprego/desemprego/Ministério do Trabalho

Bolsonaro afirmou que metodologia usada pelo IBGE para cálculo do desemprego estava errada, pois só considerava desemprego e não falava em emprego.

A declaração suscitou ampla reação de pesquisadores e técnicos, que se mobilizaram para explicar a expertise da metodologia e a confiabilidade dos dados.

Naquele momento já havia a semente para garantir o discurso em relação ao desemprego, para justificar o fracasso no combate no futuro governo: não vamos mais falar em desemprego, mas sim em emprego.

Isso circulou amplamente pelas redes sociais.

2. Mais médicos/governo brasileiro dando dinheiro a Cuba

Imediatamente após a decisão do governo cubano de retirar os médicos do programa, em retaliação às falas do presidente eleito, várias explicações começaram a circular entre os apoiadores.

Uma das principais foi a falácia de que Bolsonaro estava na verdade querendo acabar com o “financiamento da ditadura cubana” pelo governo brasileiro, pois os médicos ficavam apenas com parte do dinheiro fim.

Outra explicação foi a de que os médicos brasileiros não vão aos rincões porque a remuneração é baixa e eles não são valorizados.

Esses dois exemplos ilustram como a retroalimentação funciona e é essencial para o enquadramento do foco de um problema complexo, pautando até mesmo a mídia corporativa (brasileira, com algumas poucas exceções).

Ainda não se tem a dimensão do nível de profissionalismo por trás disso, mas é evidente que não se trata de algo espontâneo ou desencadeado puramente pelos seguidores de Bolsonaro.

Há uma rede funcionando. Além disso, aspectos de fundo relacionados a esses dois assuntos não aparecem na pauta.

Aspectos-chave do discurso bolsonarista

A formação desse discurso que se estrutura e se alimenta pelas redes sociais, com Bolsonaro, tem três aspectos muito relevantes que a consolidam:

1. Combustível: Para que o discurso se mantenha vigoroso, é necessário um combustível para alimentar sua essência. E esse combustível tem dois ingredientes.

Um deles é o ódio, personificado pelo antipetismo, com várias menções ao PT e aos “petistas”, sempre numa referência a corrupção, “roubalheira”, desvio de dinheiro.

O outro é a obsessão pela doutrinação ideológica, que é enxergada como um fantasma, em todos os lugares, pelos bolsonaristas, personificada pela Escola sem Partido.

2. Elementos-chave: A todo o momento estarão aparecendo nas declarações do presidente eleito: ideologia/doutrinação (que aparece nas falas sobre escola sem partido, discussão das provas do Enem, abordagem sobre sexo nas escolas), e ameaça marxista/comunista (nas declarações sobre o Programa Mais Médicos, Cuba e nas declarações sobre a bandeira voltar a ser verdade-amarela). E esses elementos passam a fazer parte de um discurso cotidiano, do cidadão comum que apoiou Bolsonaro.

3. Nível elementar das declarações: a quase totalidade das declarações tem uma estrutura conceitual primária, básica, com grau zero de complexidade.

Muitas vezes, o sentido lógico também se perde. E esse aspecto é fundamental para que seja amplamente apropriado e passe a integrar o discurso do cotidiano.

Mentiras e distração

O pesquisador norte-americano George Lakoff tem se dedicado recentemente a estudar o discurso do presidente Donald Trump, numa abordagem que pode nos interessar muito de perto.

Ele salienta, por exemplo, que se os jornalistas gastam tempo e energia tentando comprovar que mentiras já conhecidas são, de fato, falácias, eles estão cedendo o controle do fluxo de notícias a Trump.
Diz Lakoff: “O que os repórteres continuam a perder é a estratégia por trás das grandes mentiras: desviar a atenção das grandes verdades. A técnica é simples: criar controvérsia e confusão  em torno de temas politicamente carregados para alimentar sua base conservadora e distrair de temas que prejudicam Trump”.
Provavelmente essa análise valha também para nós.

Desde o período que antecedeu a campanha eleitoral deste ano, temos visto opositores, analistas, mídia sendo atropelados por avalanches de fakes news e torpedos bombásticos disseminados por Bolsonaro e por grupos ligados a ele.

Esses conteúdos estão pautando o debate e dominando a cena, deixando sem ação efetiva os outros atores, que se limitam a desmentir falsas polêmicas e a refletir em torno dessas falácias.

Durante a campanha, nada de efetivo em relação aos problemas graves do país foi discutido. Agora, o mesmo está ocorrendo em relação à montagem do governo Bolsonaro.

Novamente, a falta de propostas e a incompetência da equipe do presidente eleito estão sendo encobertas por torpedos mentirosos.

Está em curso, portanto, uma bem-sucedida estratégia de “distração” pelo discurso verborrágico com conotação doutrinária.

Propositalmente, com declarações aparentemente sem sentido, Bolsonaro encobre a precariedade das propostas para a política econômica, a política externa, as políticas sociais.

Com declarações bombásticas, cria cenas, empolga os seguidores e foge ao debate das grandes questões que preocupam o país.

Sua estratégia, sem dúvida, passa pela manutenção de uma situação de  caos e desordem.

“Mitos”, mesmo os tupiniquins, precisam disso pra se mostrarem úteis aos inocentes que neles acreditam.

Eliara Santana é jornalista, analista do discurso, pesquisadora e doutoranda em Estudos Linguísticos 

Fonte: contextolivre.com.br

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