E A HISTÓRIA CONTINUA
O fato é sabido. Segundo a Justiça Brasileira, Candomblé e Umbanda não são religiões. O que são? Bom... São alguma coisa, mas não religião. Religião não. A Justiça Federal poderia ter dado grande contribuição na luta por cidadania e respeito, além de diversidade religiosa. Não o fez. Ao invés disso, expôs uma herança escravocrata e altamente preconceituosa, injusta como toda atitude preconceituosa, ao negar que os cultos afro-brasileiros sejam verdadeiras religiões. A decisão pela não classificação e enquadramento dos mesmos, só fortalece a violência, a perseguição e o fomento a intolerância, mas bem do jeitinho brasileiro.
Segundo N. Birbaum, referido no Dicionário de Ciências Sociais publicado pela Fundação Getúlio Vargas, em 1986, a religião é definida como: um conjunto de crença, prática e organização sistematizadas, compreendendo uma ideia que se manifesta no comportamento dos seguidores. Dessa conceituação decorre aferirmos que toda religião se define, em princípio, por um culto prestado a uma ou mais divindades; pela crença no poder desses seres ou forças cultuados; uma liturgia, expressa no comportamento ritual; e finalmente pela existência de uma hierarquia sacerdotal.
O Candomblé e a Umbanda são religiões, e muito mais do que isso. Numa perspectiva mais abrangente, podemos afirmar, inclusive, que a história do Brasil passa pelos terreiros, pela riqueza de suas narrativas coloridas e musicais, por seus batuques, pela luta contra o racismo e pela resistência de milhões de africanos, e de seus filhos e filhas de santo.
Não é o monoteísmo que caracteriza uma religião. Se assim fosse, as religiões orientais como o hinduísmo, o taoísmo e etc., não seriam como tal consideradas. E se o monoteísmo não é critério, muito menos ainda, a exigência pífia de as práticas religiosas serem ou não baseadas em textos escritos, serem religiões de livros. A esse propósito, inclusive, o historiador nigeriano I.A. Akinjogbin, em artigo na coletânea Le concept de pouvoir em Afrique (Paris, Unesco, 1981), assim se manifestou: “O conhecimento livresco tem um valor formal e importado, enquanto o saber informal é adquirido pela experiência direta ou indireta. Os conhecimentos livrescos não conferem sabedoria (…) O ensinamento tradicional deve estar unido à experiência e integrado à vida, até porque há coisas que não podem ser explicadas, apenas experimentadas e vividas”. Qualquer pessoa sensata entenderia, lendo apenas isso, que, embora enquanto instituição se exijam estatutos e regras de qualquer pessoa jurídica, no nível da vivência, fundamental é a experiência, e nada a substitui ou exime.
Há pouco tempo, a polícia invadia os espaços sagrados afro-brasileiros, destruía, agredia e prendia seus adeptos, mas o povo de santo resistiu. A caça às bruxas, porém, não terminou. Antes, foi reinventada em tracejados modernos, repintura de um passado que não podemos deixar abandonado no silêncio omisso de um pacifismo covarde. Hoje, nos deparamos com uma sentença judicial escandalosa, que dá fôlego a discursos de ódio e ao fundamentalismo religioso, sempre imperioso, silenciosamente voraz, como um câncer que não se cura, na sociedade dita, da pluralidade. Mas o povo de santo resistirá, porque a história dos terreiros é a história da resistência. Aliás, estamos acostumados à guerra, inclusive psicológica.
Onde esta a proteção constitucional da carta maior deste estado-nação Brasil, que assim enuncia: “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”? Acaso o artigo 215, parágrafo 1º da Constituição caiu em desuso? Sentencia uma conhecida máxima: livros e papeis aceitam tudo. É fato. Quem o pode duvidar? Ao menos no Brasil, algumas leis têm força enquanto literatura jurídica. Não passam de objeto de estudo de juristas, gurus iluminados, que decidem tudo do alto de sua sabedoria abstrativa e, muitas vezes, dissociada da concretude da realidade, onde a vida, de fato, se dá.
Para entender uma religião afro-brasileira, deve-se primeiramente entender todo um processo de alteridade e um sistema cultural próprio, para saber que para o africano a oralidade está acima da escrita, mas isso não nega ou desqualifica a condição religiosa do negro ou do afrodescendente. O Estado brasileiro, cada vez mais sufocado pelo poder judiciário, que ameaça engolir os demais poderes, teria competência prática para determinar aos brasileiros, o que eles podem ou não acreditar, no nível da vivência e convicção pessoal? Parece acreditar poder. Disseram para uma parcela considerável de filhos desta Nação: vocês não são o que pensam que são. Então o que somos? Será se ousam responder, ou sabem?
O Professor e Hipnólogo Wallace Sousa
Formado em Filosofia, Teologia, Hipnose Clínica e Graduando em Ciências da Religião. Trabalha como professor no projeto UNIAFRO da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES, com o curso de Formação Continuada para Professores da Educação Básica sobre as Relações Étnico-raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
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