domingo, 8 de agosto de 2021

O caos da pandemia esconde uma nova ordem na Terra. Por Leonardo Boff

 Reprodução

Raramente na história já longa da vida, ocorreu uma situação de caos planetário como nos dias atuais. Estávamos acostumados a regularidades e a ordens sistêmicas embora nos últimos decênios temos experimentado também com crescente frequência irregularidades como tsunamis, tufões, terremotos e eventos extremos de calor e de frio.Tais fenômenos levaram os cientistas a pensar e a tentar compreender como dentro da ordem dada podiam ocorrer situações caóticas.

Dai surgiu toda uma ciência, a do caos, tão importante como as outras a ponto de alguns chegaram a dizer que o século XX será lembrado pelo teoria da relatividade de Einstein, pela mecânica quântica de Heisenberg/Bohr e pela teoria do caos de Lorenz/Prigogine.

A essência da teoria do caos reside em que uma mudança muito pequena nas condições iniciais de uma situação leva a efeitos imprevisíveis. Dá-se como exemplo o “efeito borboleta”. Pequenas modificações iniciais, aleatórias, como farfalhar das asas de uma borboleta no Brasil, podem provocar modificações atmosféricas até culminar numa tempestade em Nova York. O pressuposto teórico é que todas as coisas estão interligadas e vão assumindo elementos novos, criando complexidades no curso de sua existência (no caso, calor, umidade, ventos, energias terrestres e cósmicas) de forma que a situação final é totalmente diversa da inicial.

O caos está em todas  as partes, no universo, na sociedade e em cada pessoa. Quer dizer, as ordens não são lineares e estáticas. São dinâmicas e sempre buscando um equilíbrio que as mantém atuantes.

O universo se originou de um tremendo caos inicial (big bang). A evolução se fez e se faz para colocar ordem neste caos pelos milênios afora.

Mas aqui surge uma novidade: o caos nunca é só caótico, ele guarda dentro de si, em gestação, uma nova ordem. Logicamente ele possui seu momento destrutivo, caótico, sem o qual a nova ordem não poderia irromper. O caos é generativo desta nova ordem.

Quem analisou com detalhe este fenômeno foi o grande cientista russo/belga Ilya Prigogine (1917-2003),prêmio Nobel de Química em 1977.  Estudou particularmente as condições que permitem a emergência da vida. Segundo este grande cientista, sempre que existir um sistema aberto, portanto em permanente diálogo e trocas com o meio e sempre que houver uma situação de caos, (portanto, fora da ordem e longe do equilíbrio) e vigorar uma não-linearidade é a conectividade entre as partes que gera uma nova ordem, que seria a vida. (cf. Order out of Chaos,1984).

Esse processo conhece bifurcações e flutuações. Por isso a ordem nunca é dada a priori. Ela depende de vários fatores que a levam a uma direção ou à outra, dai a imensa biodiversidade.

Fizemos toda esta reflexão sumaríssima para nos ajudar a entender melhor o atual caos pandêmico. Inegavelmente vivemos numa situação de completo caos, caos destrutivo de milhões de vidas humanas. Ninguém pode dizer quando termina nem  para onde vamos. Ele conhece múltiplas variantes, é o seu triunfo sobre nossas células. É inegavelmente caótico e está apavorando a inteira humana. Coloca-nos questões fundamentais: que fizemos com a natureza para ela nos castigar com um vírus tão letal? Onde erramos? Que mudanças devemos fazer em relação com a natureza  para impedir que ela nos envie uma verdadeira gama de outros vírus?

Sabemos que há oculto dentro dele uma ordem mais alta e melhor. O pior que nos poderia acontecer seria a continuidade ou a volta ao  passado que criou o caos. Temos que usar nossa fantasia criadora e mais que tudo forjar, por uma prática histórica, uma ordem mais amiga da vida, terna, fraterna e justa. Seria o caos generativo.

Temos que entender o contexto de onde veio o coronavírus. Ele é uma expressão do antropoceno, vale dizer, da sistemática agressão do ser humano à natureza e à Gaia, a Mãe Terra. É a consequência de havermos tratado a Terra como uma mera reserva inerte de recursos ao nosso dispor e não como um super-realismo vivo que merece cuidado e respeito.

A partir da revolução industrial a exploramos tanto que ela já não consegue se autorregenerar e nos oferecer todos os bens e serviços vitais. Temos que inaugurar uma relação de sinergia e sustentável para com a natureza, sentindo-nos parte dela, responsáveis por sua perpetuidade e não seus donos e senhores. Senão operarmos esta conversão ecológica poderemos conhecer catástrofes inimagináveis.

No caso brasileiro, o primeiro que temos que fazer é preservar a imensa riqueza ecológica que herdamos da natureza, em termos de florestas úmidas, abundância de água, de solos férteis e da imensa biodiversidade.

Em seguida  temos que superar a marginalização, o ódio covarde que tributamos aos pobres. O desprezo e as humilhação feitas cruelmente contra a pessoas escravizadas passou a esses empobrecidos. Tal desumanidade deixou marcas profundas na população.

Não em último lugar temos que liquidar o perverso legado da Casa Grande traduzida pelo rentismo e pelos poucos miliardários que controlam grande parte de nossas finanças. Fazem fortunas com a pandemia, sem empatia com os familiares que perderam mais de meio milhão de entes queridos. Eles são o sustentáculo do atual governo necrófilo, cujo presidente se fez aliado do vírus. Esses pontos constituem  o maior obstáculo para superação do caos instalado no Brasil..

Precisamos constituir uma frente ampla de forças progressistas e inimigas da neocolonização do país para desentranhar a nova ordem, abscôndita no caos atual mas que quer nascer. Temos que fazer esse parto mesmo que doloroso. Caso contrario, continuaremos reféns e vítimas daqueles que sempre pensaram corporativamente só em si, de costas para o povo e que devastaram a natureza com seu agronegócio e reforçaram a intrusão no coronavírus entre nós.

Devemos nos inspirar no universo, nascido do caos primordial, mas que, ao evoluir, foi criando ordens novas e cada vez mais complexas até gerar a espécie humana. Nossa missão é garantir a vida, a Mãe Terra e a nós mesmos, criar a Casa Comum dentro da qual todos possam viver em justiça, paz e alegria. Esse modelo deverá sair das entranhas do atual caos e fundar um novo começo para a humanidade.

Leonardo Boff, filósofo e teólogo e escreveu Covid-19 A Mãe Terra contra-ataca a humanidade, Vozes 2020.

por
 Diario do Centro do Mundo
Fonte: DCM

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