segunda-feira, 12 de agosto de 2019

POLÍTICA - “Damares quer encerrar trabalhos de buscas aos desaparecidos políticos”

FOTO: MARCELO CHELLO/ZUMA WIRE/FOTOARENA

Dispensada da Comissão de Mortos e Desaparecidos, Eugênia Gonzaga teme a sabotagem do trabalho
A procuradora regional Eugênia Gonzaga tinha uma extensa experiência na investigação de crimes da ditadura quando assumiu a chefia da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, em 2014. Por mais de uma década ela integrou a equipe de identificação das ossadas da vala clandestina de Perus, além de liderar as primeiras iniciativas para responsabilizar torturadores e cúmplices, entre eles o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e o médico Harry Shibata, acusado de assinar laudos necroscópicos falsos de vítimas dos porões do regime. Lutou ainda pela condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos pela morte de Vladimir Herzog. “Depois disso, o tema passou a ser tratado como compromisso institucional do Ministério Público”, lembra.

Desde a instalação da comissão, em 1995, foram reconhecidas 479 vítimas da ditadura. O trabalho acabou, porém, interrompido de forma abrupta por Jair Bolsonaro. Na quinta-feira 1º, o ex-capitão exonerou Eugênia Gonzaga e outros três integrantes do grupo. No lugar assumiram um ex-assessor da ministra Damares Alves, um deputado do PSL e dois militares reformados defensores do regime. Nunca antes um chefe da equipe havia caído sem que o presidente pedisse uma indicação de substituto à Câmara dos Deputados. A canetada ocorreu uma semana depois de a Comissão ter emitido a certidão de óbito do pai do atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, o mais recente alvo dos impropérios de Bolsonaro. O ministério de Damares garante, porém, que a troca estava em pauta havia mais de dois meses.
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Eugênia Gonzaga teme a interrupção dos trabalhos da comissão. “Desde que o secretário Sergio Queiroz, titular da Secretaria Nacional de Proteção Global, assumiu, a única pergunta dele sobre Perus foi: ‘Quando termina? Eu quero encerrar isso’.” Na entrevista a seguir, a procuradora analisa ainda a cruzada bolsonarista contra os órgãos de participação da sociedade civil.

CartaCapital: O que há de mais aberrante nesta decisão?

Eugênia Gonzaga: A incompreensão do presidente sobre o significado de comissões, conselhos, dos mecanismos de democracia participativa. Os conselhos existem justamente para cuidar de temas que o governo não reuniu conhecimento suficiente. Se é para ter uma reunião de órgãos do governo, basta marcar, não precisa alterar um conselho. É uma coisa esdrúxula. Choca também a falta de vontade de compreender. É óbvio que ele sabia que não precisaria trocar a composição da comissão. Os familiares, inclusive, pediram a nossa permanência. Fizemos reunião com os primeiros escalões, apresentamos os grupos de trabalho… Estávamos à disposição para permanecer cuidando desse assunto, que é muito delicado: tem frentes em andamento, exames de DNA, toda essa dedicação em Perus, diligências pelo interior… Em princípio, nos disseram que iriam apenas repor duas vagas disponíveis. Depois, a própria ministra admitiu que, desde maio, ela pedia a troca na composição. Houve aí uma quebra de confiança.

CC: Uma das cadeiras do Ministério Público por pouco não foi entregue ao seu colega Aílton Benedito, famoso pelas posições conservadoras…

EG: Conservador é elogio. Ele tem uma posição de barbárie, diz que as vítimas são “comedores de ração humana”, comunistas, esquerdopatas. Declarações extremamente ofensivas às famílias. A questão aí é não entregar os corpos. E isso é barbárie, não posição ideológica.
FOTO: ISAC NOBREGA / AFP

CC: A nomeação da ministra Damares Alves afetou o trabalho da comissão?

EG: Sim. Ela nitidamente quer encerrar os trabalhos de buscas aos desaparecidos políticos. Diz que “não dá para viver do passado”. É revoltante quando ela pede para acelerar, pois simplesmente ela emperrou todo o processo desde que entrou. Fomos impedidos de acelerar porque a própria Damares não assinou o documento que garante à comissão verbas para as perícias. Desde 2015, a comissão depende de emendas parlamentares. O dinheiro fica depositado na conta de um projeto de cooperação. Quando houve a troca de governo, houve um novo pedido para ratificar esse apoio. Esse aval só veio agora, em julho, depois de muito custo.

CC: Não seria importante agilizar esses processos, até para confortar os familiares?

EG: O que ela considera avançar não é ampliar as buscas, é dá-las por encerradas e se dedicar apenas aos desaparecidos do presente. Como se desse para encerrar. Eles não apontaram onde estão os corpos. Procuramos agulha no palheiro. Até hoje não sabemos onde enterraram aqueles que morreram, por exemplo, na Casa da Morte, centro clandestino de tortura e assassinatos em Petrópolis. Virou pó. E, o pior, eles têm chamado essas vítimas de “desaparecidos civis”.

Eu acompanho de longe e estou muito preocupada com este novo plano de buscas e essa categoria. Hoje em dia, embora haja casos de desaparecimentos comuns, mais de 50% são pobres, negros, moradores de favela. E isso está relacionado à violência do Estado. Mas, quando você lê o Plano Nacional de Pessoas Desaparecidas, fica muito claro que eles, basicamente, se referem a crianças.

“O que a ministra Damares considera avançar não é ampliar as buscas, é dá-las por encerradas”

CC: Apesar da má vontade do governo, o que gostaria que fosse feito por esta nova equipe nomeada pelo presidente?

EG: Gostaríamos de reconstituir os autos de cada uma dessas operações, conforme manda o Código de Processo Civil. O Exército é sempre muito organizado. Era, obviamente, uma sistemática, baseada em um procedimento, documentada. Só que eles simplesmente afirmam ter destruído os autos. Seria preciso que o Ministério da Defesa informasse onde estão os corpos. Nenhum presidente da República exerceu seu papel de comandante-em-chefe das Forças Armadas para exigir essa informação. Nem durante a Comissão da Verdade aconteceu.
Fonte: Carta Capital

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