O capitalismo financeiro, diz, precisa de um Estado máximo - Foto: Wanezza Soares |
O autoritarismo moderno, afirma Pedro Serrano, substitui os generais pelos juízes e corrói o estado de direito em proveito dos interesses do mercado.
por Sergio Lirio
O Estado de Exceção, ou as medidas de exceção, como prefere Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo, dispensa os atos de força. São processos fraudulentos, que corroem por dentro a Constituição e a democracia e mantêm uma aparente imagem de legalidade.
E não se resumem a criminalizar a política, em especial, no caso da América Latina, as lideranças de esquerda ou nacionalistas. Estendem-se ao aprisionamento em massa e à imposição de reformas como a da Previdência.
O autoritarismo é essencial para o capital financeiro, afirma Serrano, pois é a forma de conter a violência provocada pela desigualdade crescente. O mercado não deseja um Estado mínimo, mas um máximo, a seu serviço.
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CartaCapital: O senhor tem usado a expressão “medidas de exceção” para descrever formas contemporâneas de autoritarismo. Em que elas se diferenciam dos regimes ditatoriais do século XX?
Pedro Serrano: Há uma nova maneira de interferir nos direitos individuais sem necessidade da tomada de poder à força, com tanques nas ruas. O autoritarismo sempre existiu na humanidade. O fenômeno atual está ligado, porém, à mudança do capitalismo, que deixa de ser predominantemente industrial e se torna financeiro.
Dinheiro gera dinheiro. Abstração produz abstração. Chegamos ao ponto no qual nem sequer a base material do dinheiro, o papel-moeda, continuará a existir. Daqui a pouco usaremos bitcoins, moedas virtuais.
A consequência é uma livre, intensa e rápida circulação de capital pelo mundo, sem um equivalente fluxo dos indivíduos, que estabelece uma governança financeira global e limita as decisões dos Estados Nacionais.
CC: De que forma?
PS: Com sua enorme capacidade de coerção dos governos. O capital ameaça fugir de um país, transferir-se para o outro, e pode em questão de dias levar uma nação a enfrentar sérios problemas econômicos.
O interessante é que, ao contrário da pregação, o mercado não deseja um Estado mínimo como imaginado pelos liberais clássicos. Exige um Estado máximo, autoritário, a seu serviço.
Nas experiências do socialismo real, no século XX, o poder político centralizava o poder econômico. Agora, dá-se o inverso. O poder econômico tenta controlar o político, o que leva da mesma forma ao autoritarismo.
CC: Por que é preciso um Estado máximo?
PS: Pelo fato de o atual estágio do capitalismo gerar uma profunda desigualdade. O autoritarismo historicamente foi usado para conter a pobreza, mas nunca se matou tanto e se prendeu tanto como agora.
Ao mesmo tempo, o Estado é o garantidor de última instância das operações do mercado financeiro. Não há uma mão invisível do mercado, ao contrário. Existe uma mão invisível do Estado.
Por que guardar dinheiro em um banco grande e não em um pequeno que paga juros mais altos? Porque se sabe que o governo não vai deixar quebrar uma instituição financeira de grande escala. Acabou--se o risco, a competição. Não existe livre-mercado.
Sabe-se muito pouco sobre o comportamento violento dos indivíduos, mas há um consenso na criminologia. Sociedades extremamente desiguais geram muita violência. As sociedades podem ser pobres e pouco violentas. Ou ricas e pouco violentas. Mas, se são desiguais, são violentas.
CC: A América Latina é a prova.
PS: As Américas, eu diria. Os Estados Unidos são os mais desiguais da OCDE e registram um número maior de assassinatos. Para conter a violência, é preciso um Estado forte, autoritário.
CC: Forte, mas incapaz de conter a escalada da violência, certo?
PS: Uma das razões: o capitalismo não precisa mais de um exército de reserva de mão de obra. Um grande contingente é destinado a uma não vida social, a uma condição não humana. Da década de 1980 para cá, o número de presos quadruplicou nos Estados Unidos.
Demorou quase 300 anos para se alcançar a marca de 500 mil. Em dez anos, o número subiu para 1 milhão. Em outra década, por conta de mudanças na lei de execução penal aprovadas no governo de Bill Clinton, no início dos anos 1990, saltou de 1 milhão para 2 milhões.
No Brasil, do início dos anos 90 para cá, o total de presos quadruplicou, enquanto, em números absolutos, decuplicou, desde a década de 80, a quantidade de mortos: de 6 mil para 60 mil por ano. E a progressão é exponencial. Nos últimos anos, dobrou tanto o número de presos quanto o de assassinados.
CC: Seria um falso Estado de Direito?
PS: Uma nova forma de exceção. Uma fraude, na verdade. Sob o manto da democracia produzem-se medidas de exceção. E isso alcança a disputa política. Dispensam-se os tanques na rua. Os golpes passam a ser dados em um formato semelhante àquele da ascensão do nazismo e do fascismo.
Usam-se as regras e as autoridades democráticas. Os aprisionamentos em massa, sem direito de defesa e sentenças definitivas, são um componente do mesmo processo que permitiu a sucessão recente de impeachments na América Latina.
CC: Por que o Estado de Direito é tão frágil?
PS: Existe uma estrutura de pensamento jurídico apartada do debate a respeito da democracia. Logo após a Segunda Guerra Mundial, houve um esforço para reconstruir um mundo desordenado. O autoritarismo parece trazer ordem, mas só produz caos. No campo do direito, surgem, na Europa continental, Constituições rígidas, que não deixam livres as decisões políticas.
Elas estabelecem limites. Não se pode ofender as liberdades públicas ou deixar de realizar direitos sociais. Mas isso é controlado pelo Poder Judiciário. E algumas teorias jurídicas pregam que o juiz pode decidir livremente, como quer. Isso gera mais do que disfunções aceitáveis, próprias da natureza dos processos. Produzem uma patologia. Os novos autoritarismos são identificados pelo jurista italiano Luigi Ferrajoli, que define esse processo como “poder desconstituinte”.
O alemão Claus Roxin chama de “populismo penal”. Outro italiano, Giorgio Agamben, de Estado de Exceção, a definição na qual me baseio. Ronald Dworkin menciona a perda do “common ground”, Norberto Bobbio, novos despotismos. Uso normalmente o termo “medidas de exceção”. Nos países desenvolvidos, elas em geral são decisões legislativas que fortalecem o Executivo. A Justiça exerce papel secundário. Na América Latina é o contrário: a Justiça passa a ter o papel central, torna-se o agente de exceção.
CC: São os novos soberanos.
PS: No Brasil da década de 1960, os militares eram os soberanos purificadores: considerados superiores moralmente ao resto da sociedade, livres das impurezas da política e detentores da força física para estabelecer a ordem. Neste momento, são juízes, promotores e delegados.
A parcela da sociedade que apoiou os militares e agora apoia o “combate à corrupção” não busca exatamente a aplicação da Justiça. Quer a ordem e, sobretudo, a extinção dos conflitos sociais e políticos. E só é possível exercer essa função divina por meio da criminalização da política.
O Judiciário não decretou o impeachment de Dilma Rousseff, mas criou as condições políticas para a sua efetivação. E a mesma Justiça acomodou a situação, não se pronunciando até hoje sobre as medidas que contestam o processo.
O poder econômico quer dominar o poder político, eliminar a mediação', afirma Serrano (Foto: Roberto Stuckert Filho/Agência CNJ)
CC: É um autoritarismo menos perceptível?
PS: Sim, pois não institui uma nova Constituição, apenas esvazia de sentido a vigente. Certos direitos passam a existir como meros símbolos. Há o direito de defesa na Constituição, mas ele é negado à maioria dos presos. Há o direito à vida, mas a polícia brasileira é a que mais mata e morre no mundo.
Existe o valor da paz social, mas estamos em uma guerra civil não declarada. Morre mais gente no País por ano do que morreram americanos em uma década da Guerra do Golfo. E nada é debatido. Os mortos não têm nome.
CC: Como esse conceito se transporta para a política?
PS: Pela criminalização dos agentes políticos. Os impeachments interrompem os ciclos democráticos, restabelecidos logo em seguida, sob mais controle, submetidos aos interesses do mercado. A Justiça, ao menos na América Latina, opera para criminalizar lideranças de esquerda ou nacionalistas.
Como não temos terrorismo ou refugiados em massa, tornou-se premente criar a figura do inimigo interno, o bandido, e, para integrar lideranças populares ao conceito, busca-se a criminalização. Nos últimos anos, principalmente durante os governos Lula e Dilma, aprovaram-se leis penais de sentido aberto, em vez de se estabelecer tipos específicos, condutas descritas em detalhes, para o cidadão saber o que é ou não crime.
Por consequência, a cada momento a jurisprudência constitui novos tipos penais, o que contraria elementos essenciais do Estado de Direito, entre eles o fato de que só a lei define um crime e que não existe crime sem uma legislação anterior que o preveja, pois o indivíduo precisa ter a consciência de que sua conduta pode ser punida.
CC: E permite mudar o entendimento caso a caso, não?
PS: Sim. Certos comportamentos passam a ser considerados crimes de uma hora para outra. Por que Fernando Collor foi inocentado pelo Supremo Tribunal Federal se os benefícios a ele foram comprovados, a reforma da Casa da Dinda e o Fiat Elba? Porque a acusação foi incapaz de identificar o ato de ofício praticado por Collor em troca dos benefícios.
No caso de Lula, bastou a suposição, não comprovada, de que ele receberia um benefício. Não há nenhuma decisão administrativa, ou promessa de decisão, do ex-presidente que possa ser relacionada à suposição de que ele viria a ser o proprietário do tal apartamento triplex na praia do Guarujá. Essa interpretação não encontra amparo nas leis.
CC: Como esses sucessivos impeachments na América Latina se conectam?
PS: Só o tempo dirá se existe uma orquestração organizada, mas não restam dúvidas a respeito de um elemento sistêmico que provoca esses processos. Não é possível por si só a reprodução da mesma estratégia em diferentes lugares. O impeachment nunca é um fim em si mesmo.
Aqui, as reformas trabalhista e da Previdência, além da PEC que limita por 20 anos os gastos com saúde e educação, são medidas de exceção, mais do que inconstitucionais. Mas não terão sua inconstitucionalidade reconhecida pelo STF, por conta da situação política e das pressões do mercado. Provavelmente, surgirão teorias jurídicas para justificá-las.
Teorias fraudulentas, cujo único objetivo é criar sentidos que a Constituição não só não prevê como repudia. Os mecanismos autoritários, para ter roupagem de democracia e realizar a fraude, precisam do discurso jurídico.
Carta Capital
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