Antes dos primeiros casos da covid-19 chegarem ao Brasil vindos da Itália, o novo coronavírus já estava presente no imaginário midiático do país. Este imaginário possuía um rosto. Ainda hoje, uma busca rápida na internet por imagens relacionadas ao termo “coronavírus” gera resultados que se dividem entre a imagem ampliada do vírus em si e imagens de pessoas com fenótipo leste-asiático.
Apesar do epicentro ter se movido para a Europa ocidental e os Estados Unidos, rostos asiáticos se fixaram no imaginário global como a representação humana da pandemia. Enquanto, no continente asiático, vemos o aumento de atitudes sinofóbicas, nos territórios de hegemonia branca (Europa e Américas), pessoas amarelas em geral se tornaram alvo de agressões racistas.
Nos Estados Unidos, até o começo de abril, mais de 1.100 denúncias de racismo e xenofobia contra asiático-americanos tinham sido registradas na plataforma de denúncias criada pelos grupos Asian Pacific Policy and Planning Council (A3PCON) e Chinese for Affirmative Action. No Brasil, ainda que o vírus que aqui circula tenha sido importado da Itália, insultos, agressões verbais e práticas de discriminação racial contra asiáticos seguem o padrão global.
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Não apenas entre os setores conservadores, mas episódios de racismo também ocorreram entre a intelectualidade progressista (e branca). Um exemplo é a coletânea de ensaios sobre a pandemia escritos por intelectuais célebres como Slavoj Zizek, Judith Butler e Giorgio Agamben, entre outros, editada pelo argentino Pablo Amadeo.
O livro, que circulou em PDF por diversas redes sociais, foi intitulado de Sopa de Wuhan, e trazia na sua capa uma gravura feita em 1904 pelo alemão Ernst Haeckel, notório adepto da eugenia e do racismo científico. A imagem de morcegos associada à China remete imediatamente à iconografia clássica do “perigo amarelo”: a estratégia de animalização de asiáticos utilizada durante a expansão imperial da Europa e Estados Unidos, nos séculos XIX e XX.
Corpos asiáticos como ratos, porcos, polvos povoaram o imaginário branco por muito tempo. A escolha de título e capa da coletânea foi contestada por vários coletivos antirracistas, com apoio de mais de mil assinaturas individuais, fazendo com que o editor se comprometesse a publicar outra versão do projeto que, no entanto, já havia alcançado muitos espaços através da sua rápida circulação em redes sociais.
No momento de uma pandemia global, é interessante notar como a urgência das redes faz com que mesmo a intelectualidade “progressista” mobilize imaginários racistas. Quanto mais urgente, mais despercebido o fantasma do racismo retorna.
O mapeamento da internet feito pelo instituto de pesquisa Network Contagion Research Institute, divulgado no início de abril de 2020, detectou um notório aumento nos “sentimentos sinofóbicos e antiasiáticos” no âmbito das redes sociais. Entre memes e postagens com teorias conspiratórias antiasiáticas, nota-se o alto uso de termos racistas contra chineses e asiáticos, demonstrando um aumento nos sentimentos de ódio contra essas populações.
Como mostra a pesquisa, a circulação dos memes começou em espaços de nicho como 4chan – plataforma virtual que abriga troca de conteúdo extremista – e chegou às plataformas de alta visibilidade como Twitter, Instagram e Reddit. A partir deste ciclo de disseminação, o ódio que se difunde na rede contamina o mundo físico através dos crimes que vêm atingindo pessoas amarelas em espaços brancos. O uso do termo historicamente pejorativo “chink”, como aponta a pesquisa, comprova o retorno de um velho vocabulário racista.
Se a mídia tradicional tenta adotar uma (limitada) postura de denúncia, os discursos de ódio se mantêm vivos pela capacidade disseminadora das redes sociais. Trata-se, portanto, de um cenário de descolamento entre distintas práticas de consumo midiático. Governos de extrema-direita se utilizam deste descolamento para conquistar seguidores, prática que ficou conhecida pelo uso bolsonarista das estratégias de desinformação disseminadas por bots.
Neste espírito, um episódio notório ocorreu no alto escalão do poder executivo de Brasília: no último dia 4 de abril, o ministro da Educação Abraham Weintraub se utilizou do personagem Cebolinha, criado por Maurício de Souza, para divulgar no Twitter charge que fazia insulto racista aos chineses, ao mesmo tempo que acusava a China de lucrar com a pandemia.
Este episódio segue outro comentário sinofóbico, de Eduardo Bolsonaro, feito dias antes nas redes sociais. Assim, o governo Bolsonaro ecoa a postura que o presidente estadunidense Donald Trump vem tomando, ao insistir em chamar o novo coronavírus de “vírus chinês”, apesar de aviso da Organização Mundial da Saúde contra o uso de qualquer expressão que atrele o vírus a um país ou etnia. Como estratégia de comunicação “direta”, ambos governos se transformaram em porta-vozes dos supremacistas brancos das redes, legitimando as agressões racistas que ocorrem pelas ruas.
De fato, a capilaridade de plataformas como o WhatsApp faz com que as informações que ali circulam venham revestidas com maior sensação de legitimidade para algumas parcelas da população. Como mostrou o levantamento do Digital News Report, à medida que o nível de confiança no jornalismo tradicional caiu em todos os países, a confiança nas redes sociais aumentou.
Em países em desenvolvimento como o Brasil, uma grande parcela da população se informa apenas por manchetes recebidas em redes como WhatsApp sem sequer acessar as notícias completas: possibilidade que muitos nem possuem por conta da limitação de seus pacotes de dados. Não à toa, como mostrou a cartilha do Intervozes sobre desinformação, o conservadorismo da “nova direita” vem se utilizando de forma sistemática destas plataformas, que se revestem de confiabilidade por fazerem circular mensagens através de “pessoas de confiança” como amigos e família.
Na junção entre um nível maior de pessoalidade das informações e uma sociedade amedrontada, a reativação dos fantasmas do racismo torna-se um fato triste, porém pouco surpreendente. O próprio WhatsApp decidiu limitar o número de compartilhamento para um por vez (no início, o aplicativo permitia até 250 compartilhamentos simultâneos, quantidade que já havia sido reduzida a cinco). Porém, como se sabe, o racismo não é uma questão tecnológica.
O paradigma da branquitude
Conforme a pandemia avança em todos os continentes, seus impactos sociais se tornam mais evidentes. Dados recém-divulgados, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, mostram a disparidade na letalidade da doença: enquanto mais pessoas brancas são contaminadas, o vírus é mais letal na população negra – e, nos EUA, imigrantes latinos – o que se explica pelo longo histórico de um menor acesso a cuidado médico nesta parcela da população.
De acordo com dados do IBGE compilados pelo Instituto Marielle Franco, no Brasil, 67% da população que depende integralmente do SUS são negros, sendo que 15,5% da população negra moram em residências que impossibilitam os cuidados mínimos de prevenção à Covid-19. É também esta parcela da população que compõe majoritariamente os profissionais dos serviços essenciais, expondo-se de forma sistemática ao risco de contaminação.
Além disso, neste mês de abril, relatos de racismo sofrido pela comunidade nigeriana na cidade de Guangzhou, no sul da China, confirmam como a pandemia exacerbou sentimentos de paranoia racial em escala global. Em todos os lugares, contudo, são os corpos brancos que saem incólumes no imaginário hegemônico, por serem os únicos que não sofrem racialização. Desta forma, percebe-se que a crise aguda causada pela pandemia acaba por exacerbar, de forma crítica e em todos os âmbitos, a colonialidade do nosso mundo moderno, que reserva lugar seguro exclusivo à branquitude.
A socióloga e filósofa Denise Ferreira da Silva nos lembra como a moderna noção de diferença racial atrelada a territórios do planeta tem como medida universal o homem branco europeu, do qual todos os outros corpos se diferenciariam. É esta conta que a pandemia vem ressaltar: a relação entre fenótipo e geopolítica, que coloca alguns corpos como alvos mais imediatos, mesmo quando se trata de um vírus que não possui intencionalidade. É um paradigma da supremacia branca que não nasce na pandemia, mas é apenas por ela revigorada. Pensar formas democratizadas e antirracistas de comunicação é fundamental para se fazer desta crise uma oportunidade.
*André Keiji Kunigami é pesquisador, mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense e doutor em Literatura e Cinema pela Universidade de Cornell (EUA)
Fonte: Carta Capital
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