"Enquanto a guerra ao covid-19 já assume traços preocupantes pela ausência de equipamento, latrina diplomática de Bolsonaro dificulta acesso de brasileiros a importações que podem salvar milhares de vidas", escreve Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pela Democracia.
Por Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pela Democracia - Um dia será possível contabilizar os danos - em vidas humanas - produzidos pela guerra criminosa do bolsonarismo contra a China.
Trata-se de um conflito muito particular. Enquanto Estados Unidos, França, Alemanha etc., têm enviado missões de negócio a China, numa tentativa já desesperada de adquirir os equipamentos e insumos hospitalares necessários para enfrentar o covid-19. Num mercado em que os fornecedores chineses possuem um virtual monopólio mundial, o governo de Jair Bolsonaro tem atuado de forma dispersiva e auto-destrutiva.
Personagens ilustres do gabinete do ódio, como Eduardo Bolsonaro, na segunda quinzena de março, Abraham Weintbraub, neste fim de semana, ocupam-se em aperfeiçoar sua peculiar latrina verborrágica para sabotar as tratativas do Ministério da Saúde-- órgão da mesma administração federal-- com autoridades de Pequim.
O efeito prático de provocações sob medida para produzir constrangimentos políticos é dificultar negociações para equipar os hospitais brasileiros para uma guerra de traços apavorantes -- pela carência de equipamentos necessários -- contra o conib-19.
"É óbvio que Bolsonaro está começando a colher o que semeou ao acusar ou deixar que seu filho acusasse a China de ser responsável pela pandemia", resumiu o diplomata Rubens Ricupero, em entrevista ao correspondente Jamil Chade. O veterano embaixador, ministro da Fazenda que lançou o plano Real, referia-se a interceptação de 600 respiradores chineses importados pelo Brasil que foram retidos em Miami e adquiridos pelo governo Donald Trump, aquele que o chanceler Ernesto Araújo já comparou a Deus. Como Ricupero deixa claro, na origem do episódio encontra-se a má vontade do governo chinês, provocada por uma declaração estúpida de Eduardo Bolsonaro, culpando a China pelo surgimento do novo coronavírus. Num país onde as fragilidades de uma diplomacia subordinada aos interesses da potência norte-americana não precisam ser expostas em detalhe, as negociações com a China constituem uma rotina de múltiplas tratativas iniciadas mas concluídas com dificuldade.
Alvo de uma guerra escancarada de Bolsonaro para cortar sua cabeça, operação que nos dias de hoje poderia desmobilizar o mínimo de racionalidade obtido no confronto contra o vírus, na quinta-feira o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta reconheceu que "só após a quarta tentativa foi possível fazer uma encomenda volumosa da China"(Valor Econômico,3/4/2020).
Graças a um esforço que incluiu a convocação do ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, para organizar a logística de uma importação naturalmente complicada, a promessa é trazer a "encomenda volumosa" no prazo de 30 dias.
Pode ser uma boa novidade mas não custa lembrar que, até lá, a pandemia já terá avançado mais quatro semanas sobre a população brasileira.
No esforço para se diferenciar do bolsonarismo e assumir a responsabilidade de proteger a vida e a saúde de suas populações, tem crescido o número de governadores que, na trilha iniciada por São Paulo, procuram ficar longe do ambiente envenenado do governo federal para fazer o que podem.
A iniciativa de comprar de 600 respiradores artificiais, é parte dessa situação. Impedidos, por lei, de fazer um pagamento adiantado no valor de R$ 42 milhões, o consórcio de 9 governadores do Nordeste acabou abandonado no meio do caminho por um intermediário internacional contratado para fazer o negócio.
Assim se desfez o acerto prévio com os governadores em troca de uma oferta mais polpuda do governo norte-americano, de cofres abertos desde que Donald Trump compreendeu que uma postura irresponsável sobre a pandemia poderia produz uma tragédia com dimensão suficiente para lhe custar a reeleição.
Do ponto de vista da saúde da população brasileira,a decisão foi escandalosamente nociva. Conforme estimativa de um ex-ministro da Saúde ouvido pelo 247, em três meses os respiradores poderiam servir a 3600 pacientes graves, que ali teriam as últimas chances de lutar pela sobrevivência.
(No momento em que a interceptação ocorreu, o número de óbitos produzido pelos covid-19 no Brasil inteiro ainda não atingia um décimo do total de pacientes que os respiradores poderiam beneficiar). Sabemos que Jair Bolsonaro dedicou cada dia de seu governo a produzir demonstrações sucessivas de submissão a Washington, que incluíram a abertura da base de Alcântara, a venda da Embraer a Boeing e outras decisões que só interessavam ao poder imperial dos Estados Unidos. Como era possível adivinhar, contudo, na hora de dificuldade do país, para concluir um negócio legítimo de autoridades brasileiras, o Brasil não teve direito a nenhuma contrapartida por parte de Donald Trump.
Hoje novo epicentro mundial da pandemia, os 600 respiradores que eram destinados ao país nem de longe serão capazes de suprir a principais necessidades dos hospitais norte-americanos. Só para se ter uma ideia. Quando, com base num decreto da Guerra da Coréia (1950-1953), o governo Trump decretou uma intervenção na GM, para obrigar um dos colossos do capitalismo industrial a fabricar equipamentos médicos, deixou uma encomenda de 40.000 respiradores. Em comparação, a carga interceptada em Miami representava menos de 0,1% da encomenda. Mesmo assim, a desfeita aos brasileiros não incomodou Trump nem provocou reações inconformadas do governo brasileiro. Na realidade, quando o mundo se dá conta da urgência de encontrar equipamentos para enfrentar uma epidemia que deve produzir vítimas numa escala muito maior do que a maioria dos conflitos militares convencionais do último, o silêncio de Bolsonaro sobre o caso chama a atenção.
Alvo de uma operação semelhante do governo norte-americano, que desviou 200 000 máscaras cirúrgicas destinados a seu país, o ministro do Interior da Alemanha, Andreas Geisel, acusou Trump de "pirataria moderna". Na França, Valérie Precresse, presidente da região Île-de-France, onde fica Paris, denunciou que negociadores norte-americanos atravessaram uma tratativas para a compra de máscaras, agindo com métodos cartelizados, oferecendo o triplo do preço e pagamento adiantado. De Brasília, não se ouviu sequer um gemido, o que chega a surpreender, mesmo levando em conta a devoção com traços de boçalidade em direção a Casa Branca. Há uma curiosidade.
Os respiradores mudaram de destino dias depois daquele festivo encontro Trump-Bolsonaro em Miami, do qual duas dezenas de integrantes da comitiva brasileira retornaram infectados pelo covid-19. É possível imaginar que, em 7 de março, naquele ambiente de festividade e confraternização em torno de Trump, operadores da Casa Branca tenham capturado um sinal verde para levar a operação em frente poucas semanas depois, com a certeza de que o governo brasileiro, orientado por um sectarismo sem paralelo em relação aos adversários políticos, não iria denunciar a intervenção nem fazer um escândalo internacional.
Vale recordar que o equipamento se destinava a hospitais de uma região que é uma espécie de condomínio dos adversários do bolsonarismo. Entre seus 9 governadores, quatro são filiados ao Partido dos Trabalhadores, um ao PC do B, dois ao PSB e um ao PMDB ligado a Renan Calheiros, de perfil oposicionista. No Sergipe, a vice de Belivaldo Chagas(PSD), é Eliane Aquino, filiada ao PT.
Orientado por um sectarismo violento, nunca visto na política institucional brasileira, não é difícil compreender o silêncio de Bolsonaro diante da investida de Donald Trump contra um equipamento destinado aos habitantes da região mais pobre do país. Uma indignidade da parte de todos envolvidos.
Alguma dúvida?
Paulo Moreira Leite
Paulo Moreira Leite é colunista do 247, ocupou postos executivos na VEJA e na Época, foi correspondente na França e nos EUA
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