domingo, 3 de julho de 2016

Precisamos discutir a relação

Divulgação

Justamente por ser autêntico em toda a longa e implacável auto-reflexão, Drummond consegue ser convincente ao final
Tudo começa em um espaço tão diminuto quanto imenso para abarcar reflexões sem fim: o coração.


Drummond explica:


“Sim, meu coração é muito pequeno.

Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme.
Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.”

É ilusão supor que o dilema tenha conclusão tão cedo, apesar de as afirmações do poeta soarem conclusivas. Todas serão revistas.


A primeira delas — “meu coração é muito pequeno” — pode referir-se à compreensão libertadora de um passo pequeno, um único passo, até a fronteira do egoísmo que cega todos nós para a humanidade.

A curta caminhada até a fronteira pode colocar-nos entre dois mundos, o do nosso coração pequeno e o da largueza do mundo. Mas fronteira não é lugar de morada, é preciso escolher entre rumar de volta para o “eu” ou avançar em direção ao “outro”.

O presidente interino do Brasil, Michel Temer, segundo declarou à imprensa, aparentemente avançou em direção ao “outro” — o povo — quando aceitou o pedido de afastamento do ministro Romero Jucá. Por outro lado, não abriu mão do “conselheiro”, que continua participando das reuniões do ministério como “ministro sem pasta”, em fotos oficiais do governo.

Foco esta primeira relação “eu-tu” porque é emblemática dos tempos atuais, não só no Brasil. É o tipo de parceria que não visa terceiros tampouco visa o “nós”.

Basta abrir a primeira página de qualquer jornal, de hoje, no mundo, e procurar essa relação interesseira de dois, podem ser dois políticos, mas também podem ser dois amantes ou dois meros conhecidos… Os exemplos são infindáveis, não dá para listar.

A regra desse tipo de relação é salvar a própria pele e ela não permite que princípios universais de ética sejam salvos juntos. Como essa regra se aplica a qualquer campo da experiência, ela pode ser observável tanto no diminuto espaço do coração como no espaço público: as ruas.

Foi nas ruas — urnas — que os britânicos votaram a saída da União Europeia. O coração do eleitor talvez fizesse eco aos votos do êxodo, mas, concluída a apuração, surgiu a dúvida: “será que votei realmente a meu favor ou terá sido contra”.

O poeta ensina, na sequência do texto, que as reflexões precisam ser ampliadas. Assume que “nunca” escutou “voz de gente” e que é “pobre”. Lamenta, sem abandonar a luta, tampouco o poema:


“Só agora descubro como é triste ignorar certas coisas.”

Quanto Drummond diz por nós! Ignorar certas coisas é o caminho certo para o fracasso da relação. E da vida.


Percebo tantos à minha volta jogando a relação e a vida em uma lata de lixo porque precisam de dinheiro e de emprego. Precisam de um futuro certo no horizonte incerto do século 21, que não é diferente de outros séculos (basta ver as semelhanças entre a década de 30 do século 20, retratada nos versos acima citados, e a da segunda década do século atual).

Para o mesmo propósito — acesso ao futuro —, essas mesmas pessoas que atiraram preciosidades pela janela pegam a relação e a vida despejadas no lixo por terceiros e delas se apropriam, com o esforço de torna-las artificialmente suas.

Os mendigos, na mais precisa definição da palavra, saem-se melhor com restos de comida. Sofrem como o poeta!

Justamente por ser autêntico em toda a longa e implacável auto-reflexão, Drummond consegue ser convincente ao final, quando, pela primeira vez, fala em “nós”. O aprendizado é saber que, sem uma percepção do “nós”, não há futuro possível. E que, antes de chegar ao “nós”, é preciso passar por “eles”:

“Meus amigos foram às ilhas.

Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram
e trouxeram a notícia de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.”

É a notícia dos amigos, salvos depois de naufragarem nas piores tormentas, que alicerça a confiança do poeta nos dias vindouros. Ele afirma, muito mais lindamente, que a salvação de nós mesmos tem que passar pelo olhar amoroso na direção do outro, o amigo, o amante… também o vizinho, o renegado, o diferente.


É uma lição eterna, comprovável a qualquer tempo.

Para entender melhor, deixo o poema com vocês, a seguir. É nosso:

“Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo.
Por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens.
As diferentes dores dos homens.
Sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem… sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos, tão calma!
vai’ inundando tudo…
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos — voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar.
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram
e trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
— Ó vida futura! nós te criaremos”

* Carlos Drummond de Andrade em “Mundo Grande”, no livro “Sentimento do Mundo”, 1940 


Fonte: Jornal Tornado

Nenhum comentário:

Postar um comentário