Fernando Gomes / Agencia RBS
Vítima de tentativa
de assassinato pelo próprio marido, a cearense que virou nome de lei brasileira
contra a violência doméstica relembra seu drama e fala sobre as conquistas e os
desafios das mulheres
Por Jaqueline Sordi
Maria da Penha Maia Fernandes gostava
de dormir. Ao deitar, costumava imergir nos sonhos. Era difícil tirá-la da cama
na manhã seguinte. Em 29 de maio de 1983, quando o sol nascia, foi acordada
abruptamente pelo estampido de um tiro, disparado contra ela pelo seu então
marido, o economista colombiano Marco Antonio Heredia Viveros. A agressão, cuja
certeza do autor ela teve já no primeiro segundo após o disparo, deixou-a
paraplégica.
A cearense tinha 38 anos, era uma
profissional respeitada, esposa e mãe de três filhas que, na época, tinham
entre dois e seis anos. A partir daquele dia, transformou-se em ativista na
luta contra violência doméstica, autora do livro Sobrevivi... Posso Contar,
protagonista de uma das leis mais importantes para mulheres do Brasil e
referência mundial sobre o tema.
Entre um voo e outro para palestrar
pelo país – e a caminho de Porto Alegre para uma série de eventos relacionados
ao Dia Internacional da Mulher –, Maria da Penha, hoje com 71 anos, conversou
com Zero Hora sobre os 10 anos desde a sanção da lei que leva o seu nome.
Considerada pela ONU como uma das mais avançadas do mundo, a lei criou
mecanismos para coibir a violência familiar e contra a mulher, estabelecendo
punições mais rígidas aos agressores e criando juizados e redes de apoio às
vítimas.
Durante a conversa com ZH, a ativista
contou ainda detalhes sobre sua história, relembrou a busca pela condenação de
seu ex-marido e falou sobre os avanços e os desafios das mulheres brasileiras.
– Hoje, com a Lei Maria da Penha, já
temos mais condições de sermos orientadas sobre nossos direitos e sobre como
sair de uma situação de violência doméstica – orgulha-se.
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mais:
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Há
10 anos, a senhora se transformou em símbolo da luta contra a violência
doméstica. Todos conhecem a sua história a partir do dia em que seu ex-marido
tentou lhe matar. Quem era a Maria da Penha antes disso?
Era
uma mãe de três filhas, profissional responsável (farmacêutica bioquímica, com
mestrado), que cuidava de casa, e que infelizmente se viu em uma relação de
violência doméstica muito intensa. Eu trabalhava até então em um laboratório de
uma instituição no Ceará. A minha situação dentro de casa se agravou na década
de 1980, em um momento em que ocorreu um movimento de mulheres no Sudeste do
Brasil para dar visibilidade à questão de assassinatos de mulheres por seus
companheiros. Na época, não se falava quase sobre o assunto, a mulher não tinha
voz nem vez, e este foi um período em que a violência doméstica passou a
aparecer.
Quando
os abusos começaram?
A
violência começou quando nossas filhas nasceram. Meu ex-marido começou a
mostrar seu verdadeiro eu. Sofri muita violência psicológica, principalmente em
relação ao meu papel de mãe, porque ele maltratava minhas filhas. Antes disso
ele era uma pessoa amável, prestativa, querida pelos amigos.
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Em 1963, quando foi eleita Rainha dos Calouros na
Faculdadede FarmáciaFoto: Divulgação /
Arquivo Pessoal
Quanto tempo
duraram os abusos até a primeira tentativa de assassinato?Ele batia nas
crianças?
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Sim,
com pancadas. Elas temiam muito ele, só o olhar já amedrontava. É muito triste
quando essa violência envolve crianças, que não têm capacidade de absorver
isso. Ele não aceitava o comportamento de criança, queria que elas fossem
adultas.
Não
posso te precisar, mas foi a partir dos anos 1980, quando já tínhamos duas
filhas e a terceira estava a caminho. Além de agredir as crianças, ele também
passou a me amedrontar pela força física. Jogava pratos para nos atingir. A
gente nunca sabia quando ele chegaria em casa, se iria chegar, como iria
chegar. Qualquer contrariedade e ele já ficava violento.
Amigos
ou parentes suspeitavam que a senhora corria risco de vida dentro de casa?
Não,
pois quem é agressor, na maioria das vezes, é socialmente aceito. Quer dizer, é
publicamente dócil, educado, e faz até com que as pessoas duvidem que ele possa
cometer tamanhas atrocidades. No meu caso era assim. Somente as amigas mais
íntimas tinham conhecimento, mas vivíamos em uma época em que não existia
visibilidade para esse tipo de violência, nenhuma política para atender essas
mulheres, nenhuma orientação para se entender que essa violência é fruto do
machismo.
O
que a senhora lembra da noite em que seu marido tentou lhe matar pela primeira
vez?
No
dia do fato não tinha acontecido nada que justificasse uma agressão. Pelo
contrário. Ele havia chegado de uma viagem (Marco dava cursos no Rio Grande do
Norte e passava uma semana por mês fora de casa), saímos para visitar uma amiga
minha que tinha tido filho. Na volta, coloquei as crianças para dormir e fui
também para a cama. Ele continuou no seu escritório. Por volta das 6h do dia
seguinte, acordei com um barulho muito forte, um estampido, e vi que não
conseguia me mexer. Na hora, meu primeiro pensamento foi: ¿Meu marido me
matou¿.
Mas
depois ele forjou um assalto....
Isso.
Vizinhos ouviram o barulho e correram para a rua. As duas moças que trabalhavam
lá em casa acordaram também com o estouro e viram meu marido na cozinha, com o
pijama rasgado e com uma corda no pescoço. Um dos vizinhos, que era médico, me
socorreu, e me levaram ao hospital. Em nenhum momento o Marco falou que um tiro
havia sido disparado. Minha sobrevivência e tudo que ocorreu a partir de então
foi fruto da ajuda dos meus vizinhos e da minha família. Fiquei quatro meses
hospitalizada. A versão que vingou foi a de que teria sido um assalto, e a
minha preocupação inicial passou a ser sair da situação de doença grave. Mas
logo vi que precisava me proteger dele também.
A
senhora chegou a acreditar em algum momento na versão dele?
Claro,
claro. Eu acreditei. No primeiro momento me passou pela cabeça que ele teria
tentado me matar, mas logo ele contou detalhes do que teria sido o assalto, que
quatro homens teriam entrado na casa, então essa versão foi acreditada. Ela só
foi desfeita alguns meses depois, quando retornei à minha casa e fui mantida em
cárcere privado. Nesse momento, tomei conhecimento também do que a vizinhança
interpretou sobre aquele dia.
O
que quer dizer com ¿cárcere privado¿?
No
momento em que cheguei do hospital, ele foi curto e grosso: não queria que a
minha família nem mais ninguém se aproximasse de mim. Eu precisava reagir,
estava em cadeira de rodas, tentando me adaptar, e não podia receber ninguém
sem a autorização dele. Nesse período, que durou uns 15 dias, comecei a temer
novamente pela minha vida, então solicitei que minha família conseguisse um
documento, o de separação de corpos. Com esse documento, poderia sair de casa
sem perder a guarda das minhas filhas. Caso contrário, poderia ser abandono de
lar. Esse documento foi resolvido em cerca de 15 dias e, já próximo a minha
saída de casa, fui quase eletrocutada por meio de um chuveiro. Na hora,
imaginei que tinha sido um problema elétrico, mas depois, com as investigações,
foi comprovado que ele havia feito aquilo. Ele tinha danificado propositalmente
o chuveiro.
Com as filhas, em 1983, em um dos primeiros passeios desde que saiu do hospital após ter sido baleada pelo maridoFoto: Divulgação / Arquivo Pessoal
Como
suas filhas lidavam com tudo isso?
Elas
estavam em casa quando tudo ocorreu, mas eram pequenas demais. A mais nova não
tinha dois anos, a mais velha não tinha sete, e a do meio, cinco. Com o tempo,
foram entendendo o que tinha acontecido e sempre participaram muito na minha
busca por justiça. Eu me reunia com mulheres para conversar, escrevia artigos,
me expunha muito, e elas passaram a entender e defender a causa comigo.
Quando
surgiu a ideia de transformar seu sofrimento em uma causa?
Bem,
antes mesmo de ele tentar me matar, minhas amigas já tinham conhecimento sobre
o fracasso do meu casamento. Elas me ajudaram muito, participaram mais
diretamente dos períodos críticos. No ano seguinte ao fato, quando o processo
policial foi concluído e viram que tudo aquilo que meu agressor tinha dito no
primeiro depoimento não era concreto, pois ele não sabia mais o que tinha
falado na primeira versão, é que as coisas foram se encaixando. Demorou
praticamente oito anos até o primeiro julgamento, e nesse tempo comecei a me
aproximar de movimentos de mulheres. Foi aí que encontrei uma motivação para
continuar. Me coloquei em uma posição de cara lavada, sem medo nem vergonha de
dizer que fui vítima de violência doméstica. Enfrentei muito machismo, com pessoas
me perguntando: ¿O que a senhora fez para merecer isso?¿.
Levou
quase 20 anos para provar que a senhora foi vítima de violência doméstica,
correto? Marco foi condenado a oito anos de prisão e cumpriu apenas 16 meses em
regime fechado.
Na
realidade, a punição aconteceu depois que o Brasil foi condenado
internacionalmente pela maneira negligente com que tratava os casos de
violência contra a mulher. A decepção com a Justiça brasileira foi enorme para
mim e para toda a sociedade que acompanhava o caso de perto. Uma pessoa que
tentou matar a esposa foi submetida a dois julgamentos populares, condenada nos
dois, mas por conta de recursos protelatórios só foi presa por pressões
internacionais, faltando seis meses para o crime prescrever. O tempo de prisão foi
tão pequeno que não chega perto do que ele fez. Mas hoje essa história fica de
lado. O importante, o que me motiva, é a criação da lei. Hoje o que me estimula
é saber que pude fazer parte da história do Brasil.
Em
2010, Marco lançou um livro, A Verdade Não Contada no Caso Maria da Penha, no
qual nega o crime, condena o Judiciário cearense e lhe chama de dissimulada.
Seu ex-marido diz que o único erro que cometeu foi ter sido infiel, e que tudo
teria sido uma armação sua por vingança. Chegou a ler o livro?
Não.
Tomei conhecimento, mas não me abalei, pois ele é uma pessoa com imaginação
muito fértil, capaz de criar uma história de um assalto para justificar o que
ocorreu naquela noite. Ele pode escrever várias vezes o que quiser, eu não me
preocupo.
Avaliando
os 10 anos da Lei Maria da Penha, quais os principais avanços? E as barreiras?
Hoje,
acredito que há um compromisso legítimo da sociedade em relação ao tema. Dados
e estatísticas são fornecidos pela imprensa mostrando que mulheres estão
denunciando mais. Mas ainda há muito para evoluir. Por exemplo, ainda há
mulheres que não têm onde denunciar, mulheres que acham que, quando apanham, é
porque mereceram – temos homens que acreditam nisso. E isso se dá porque a lei
não está disseminada em todos os municípios brasileiros, e porque falta
educação em relação ao tema.
Com
a camisa do Instituto Maria da Penha, fundado em 2009 para monitorar o Poder
Público na prestação de serviço à mulher vítima de violência doméstica e
realizar projetos de proteção socialFoto:
Instituto Maria da Penha / Divulgação
O
seu caso foge do estereótipo – o de que a violência doméstica ocorre em
famílias de baixa renda, com pouca escolaridade.
As
mulheres que vão às delegacias são as de baixa renda, pois são as que mais
precisam desse serviço. Elas não podem pagar um advogado particular para acompanhar
o processo. Quem tem uma renda melhor consegue sair da situação de violência
doméstica sem muita exposição, e opta por isso até para preservar os filhos. A
violência ocorre em todas as classes, mas acontece também, em muitos casos, de
a mulher de classe média ou alta optar por ficar com o agressor pelo apoio à
educação dos filhos. O marido banca o lazer, a escola, a faculdade, coisas que
ela sozinha não teria condições de manter. Muitas têm dificuldade de se
desvencilhar da relação por isso.
Machismo
e igualdade de gênero são temas em evidência. A redação do último Enem foi
sobre violência doméstica. Houve uma campanha nas redes sociais para denunciar
¿professores abusadores¿, e, aqui no Sul, meninas protestaram para usar
shortinho em escolas. Estamos evoluindo?
Claro
que sim. Esses movimentos são importantes para pressionar os gestores públicos
a promover mudanças, mas existe uma questão mais importante ainda: a educação.
Precisamos trazer o tema para a sala de aula, colocar o assunto em pauta, desmitificar
a superioridade do homem que predomina na cultura machista. Vejo que o primeiro
despertar da educação para o assunto foi a prova do Enem.
De
que forma os homens podem fazer parte dessa luta contra a violência?
Hoje
já encontramos muitos homens comprometidos porque eles sabem que a violência
pode atingir também suas filhas, suas netas. Nenhuma mulher está livre de ser
vítima.
Como
a senhora imagina que a lei vá funcionar no Brasil daqui a 10 anos?
A
sociedade está no caminho certo, e um exemplo disso foi o número de eventos no
8 de março. O tema ganha visibilidade cada vez mais. É preciso que isso ocorra
de forma mais frequente, é preciso cobrar mais dos gestores públicos, é preciso
que a sociedade gere condições para que as mulheres saiam da condição de
violência, dentro de todos os municípios, que elas conheçam cada vez mais os
seus direitos. Acredito que daqui a alguns anos a lei será aplicada em todas as
regiões, de forma mais homogênea.
Na
sua avaliação, por que as mulheres ainda têm baixa representatividade na
política? Dos 20 deputados filiados ao novo Partido da Mulher Brasileira, por
exemplo, só dois são mulheres, e a presidente do PMB já avisou que a sigla não
é feminista.
Acho
que é porque agora é que elas estão tendo mais certeza e mais vontade de mudar.
E também por aptidão. Eu, pelo menos, não gostaria de ser política (risos).
Acredito que as dificuldades foram grandes para as mulheres chegarem aonde
queriam. À medida que vão modificando e sendo facilitado o acesso às diferentes
áreas, essa representatividade pode aumentar.
Ao
mesmo tempo em que as mulheres estão mais ativas nas redes, como mostram
campanhas como #primeiroassedio e Chega de Fiu-Fiu, ainda é frequente os homens
reagirem com descaso, dizendo que elas estão fazendo ¿mimimi¿. Por que é tão
difícil reconhecer formas de abusos cotidianos contra a mulher?
Isso sempre existiu, mas mulheres
tinham mais vergonha de dizer. Agora estão se dando conta de que os
comportamentos são realmente abusivos, estão falando, denunciando. Isso tem que
chegar a um fim. Ninguém é propriedade de ninguém. As mulheres estão falando
mais. No meu tempo, ninguém nem sabia o que era violência de gênero.
Antigamente, se falava que o fulano era um bom marido, mas batia na mulher.
Como se bom marido significasse apenas prover casa e comida.
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