Aos
25 anos, Cláudio de Almeida foi levado pelo Exército e passou pelo famigerado
Pelotão de Investigações Criminais. Lá, conheceu a brutalidade dos militares ao
lado do amigo Honestino Guimarães, desaparecido desde 1973
Apenas quatro anos depois da inauguração, Brasília, ainda com prédios em
construção, tornou-se o centro de um golpe militar. Em 1° de abril de 1964, as
Forças Armadas derrubaram o governo do então presidente João Goulart. A cidade
era sede oficial dessa instituição, da Polícia Federal e outros órgãos de
segurança. Todos os comandos hierárquicos passavam por aqui. Além disso, Minas
Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, estados apoiadores do movimento, enviaram
tropas para o Distrito Federal. A região se tornou, então, uma das mais
policiadas do país, sendo o Pelotão de Investigações Criminais (PIC), do
Exército, , no Setor Militar Urbano (SMU), um dos locais com mais relatos de
torturas.
A prisão ocorreu durante a invasão da Universidade de Brasília, em 1968, e foi registrada pelo Correio, na ocasião
“Esse aí eu conheço. Ele é manjado. Pode levar.” Assim foi decretada a prisão
de Cláudio de Almeida, durante invasão da Universidade de Brasília (UnB) em
1968. Do local batizado como campinho e usado para triagem dos estudantes, ele
foi levado ao prédio do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no
Setor Bancário Sul (SBS). Na época, o instituto dividia espaço com a PF.
Cláudio tinha 25 anos e não passou muito tempo lá. “Fui levado para a garagem.
Já existiam estudantes presos e continuava chegando gente. Mas resolveram subir
comigo. Um sujeito falou: ‘Aqui já passaram dezenas de estudantes, mas estão
chamado você no Exército’”, recorda-se. A ordem foi obedecida em seguida e
Cláudio foi levado, encapuzado, ao famigerado PIC.
Na cela, um conhecido, outro estudante. Havia mais um preso, do qual o
alertaram para não conversar. Estaria ali a mando dos militares para ouvir o
que os detentos diziam. Os primeiros dias foram de interrogatórios violentos.
“Éramos meninos. Ficávamos abismados com a brutalidade deles”, avaliou. Hoje
com 70 anos, o ex-estudante da UnB diz nunca ter sido líder estudantil.
Define-se como alguém de articulação. Participou do grupo Ação Popular e outros
movimentos dentro da universidade.
Balde d’água
O anúncio do interrogatório era um balde d’água. “Aí me levaram para prestar os
depoimentos. Gritavam ‘comunista! comunista!’. Vinham com telefone, aqueles
tapões no ouvido. Queriam saber de que grupo eu fazia parte e quem mais estava
comigo. Com relação a choque elétrico. Não gosto de falar nesse assunto… Isso é
uma coisa que… A gente…”, disse, emocionado. O choque elétrico veio depois que
os militares falharam na acareação com Honestino Guimarães, líder estudantil da
UnB desaparecido desde 1973. Os dois, amigos e companheiros de resistência na
universidade, foram colocados lado a lado.
Muito branco, Honestino estava cheio de hematomas, boca machucada, olhos roxos.
“O coronel nos colocou juntos e disse: ‘Está vendo aí? Olha o líder de vocês.
Está todo cagado, olha o que virou. Não aguenta uma porrada’, e começaram a
exigir que ele dissesse quem eu era, de que grupo fazia parte, e espancaram o
Honestino. Ele não falou nada”, lembra. O amigo também passou por afogamentos.
A sessão de tortura durou horas. “E ele não abriu a boca. Nem olhava para mim.
Ficava com um olhar perdido. Era um menino. E não falava.”
A partir daí, os militares
passaram a dar choques em Cláudio. “É uma coisa impressionante, que você não
tem mais dimensão do tempo. Mas quando para…. Ah parou!” Cláudio dá uma pausa.
“Você começa a ter uma relação paranoica com o cara que fica lá. Pensa: ‘desligou,
podia deixar mais cinco minutos, mais um minuto. Dali a pouco, ele liga
novamente”, conta.
Daniel Faria, professor da UnB e integrante da Comissão da Verdade Anísio
Teixeira da UnB (leia Para saber mais), explica que há uma diferença na
conceitualização de tortura. “Violência acontecia até nas delegacias. Mas
existe a que envolve um aparato técnico, com apoio médico, institucional e sistematizada,
com troca de conhecimento entre os órgãos”, detalha. Em Brasília, o palco desse
tipo de tortura era o PIC, para onde eram levados também presos de Goiás. No
local, há relatos de técnicas variadas, como uso de baratas em órgãos sexuais
femininos, pau-de-arara, além da tortura psicológica.
Depois de 15 dias, a tortura para Cláudio acabou. Ele foi liberado após um mês,
mas com a promessa dos militares de que o encontrariam e o prenderiam
novamente. Por isso, passou um tempo fugindo. Na volta a Brasília, recebeu um
recado do amigo de prisão. Honestino já estava na clandestinidade e marcou um
encontro no Instituto Central de Ciências (ICC) da UnB, ainda em obras. Cláudio
foi levado até lá encapuzado, para não expor o líder estudantil. “Ele me contou
que sairia da cidade. Perguntou para mim o que eu faria. Respondi que não tinha
mais estrutura para continuar. Eu era um pequeno-burguês e minha família
sofrera muito com minha prisão”, relata. Os dois abraçaram e se despediram.
Depoimento
[FOTO3]
“Durante a hora da aula da UnB, em 9 de abril de 1964, a Polícia Militar chegou
e desceu uma tropa e, pouco depois, saiu uma lista de chamados à reitoria.
Estávamos em um dia normal no prédio do Dois Candangos. De repente, vi soldados
rastejando pelos jardins como se fossem fuzileiros navais tomando uma praia.
Fomos levados em um ônibus para o Teatro Nacional. Lá, funcionava o Comando de
Operações da PM de Minas Gerais, que viera para cá. O teatro estava em obras.
Ficamos em um vão. O mais preocupante era não saber de coisa alguma. A invasão
da UnB foi apenas oito dias depois do golpe. Nós seríamos levados a um quartel.
O momento mais desagradável desse dia foi a saída do teatro. Os soldados
criaram um tipo de um corredor polonês e ficaram debochando e provocando. Eu
fiquei pouco tempo, pois era promotor (além de professor da UnB) e meus colegas
intervieram. Logo fui liberado do quartel. Mas o problema veio à noite, quando
vimos a prisão de deputados e desembargadores, autoridades importantes. Aí
soubemos do Ato Institucional nº 1, que retirava direitos políticos de
opositores ao regime e permitia a prisão deles. Era o início da ditadura.”
José Paulo Sepúlveda Pertence, 75 anos, foi presidente do Supremo Tribunal
Federal (STF). Na UnB, atuou como instrutor desde a fundação, em 1962, até fim
de 1965, quando foi um dos professores demitidos na grande crise da
universidade
Investigação em curso
Os depoimentos de vítimas e testemunhas da ditadura na Comissão de Memória e
Verdade Anísio Teixeira da UnB tiveram início em 21 de maio deste ano. Assim
como a Comissão Nacional da Verdade (CNV), a da Universidade de Brasília
remonta ao período militar, mas o foco são as perseguições e os abusos sofridos
por alunos, professores e funcionários da instituição. O grupo de trabalho
também se dedica aos casos de desaparecimento, como o do estudante de geologia
Honestino Guimarães, e de mortes em circunstâncias obscuras, por exemplo, a de
Anísio Teixeira. Nos anos 1950, ele dirigiu o Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos (Inep) e, em 1961, idealizou a UnB com Darcy Ribeiro.
Fonte: Correio Braziliense
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