sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

História, ciência do homem, por José Carlos Ruy

“Espero sinceramente que, nestes tempos ásperos que vivemos, que possam ajudar a compreender as contradições que enfrentamos na luta democrática e pelo progresso social “
Amigos, ao longo do tempo colecionei um conjunto de observações sobre a história como ciência. Nelas polemizo com aqueles que recusam reconhecer que a história é uma ciência que registra e analisa a ação dos homens através dos tempos. E que pode, dessa maneira, ser um guia para a intervenção consciente no processo histórico.
Nesse sentido apresentarei, sob o título geral de “História a ciência do homem”, estes textos, que submeto ao escrutínio e à crítica dos leitores do Portal Vermelho.
Espero sinceramente que, nestes tempos ásperos que vivemos, que possam ajudar a compreender as contradições que enfrentamos na luta democrática e pelo progresso social
História, ciência do homem – Introdução
Centrada no fato, no acontecimento, no passado irrepetível, na compreensão do processo social, a história se distingue das demais ciências pela natureza humana e social de seu objeto. Ela “não é uma ciência como as outras”, escreveu o historiador francês Jacques Le Goff (1984). Qual é o objeto da ciência da história? Não é, evidentemente, o mesmo da física, da química ou outras ciências que analisam o mundo material que quase sempre pode ser tocado, medido, observado diretamente.
Em primeiro lugar, diz Le Goff, o historiador deve “ver”. Ele ensina que a palavra “história” deriva do radical indo-europeu “wid”, “weid”, que significa “ver”.
Mas esta é metade do trabalho do historiador, diz o também francês Fernand Braudel – “ver, fazer ver”, “se possível com os nossos próprios olhos” (cit. in Le Goff: 1984). Isto não basta. Em grego, “historien” significa “procurar saber”, “informar-se”. Para entender o sentido de um fato, esclarecer seu significado, procurar os liames que o encadeiam a outros acontecimentos e lhe dão sentido, é preciso situá-los dentro da cadeia de acontecimentos que o enredam e iluminam.
Uma história baseada apenas nos fatos, que renuncie ao esforço de compreender o processo no qual se situam e estão encadeados, não passaria de mera crônica exposta por um antiquário.
Para compreender e fundamentar uma visão da realidade social, a história precisa examinar o passado em busca dos traços que levaram à forma atual de organização da vida, e não à outra. Como Marx já havia chamado a atenção, a forma mais desenvolvida e mais complexa e variada é a chave para que sejam compreendidas as formas anteriores a partir das quais ela evoluiu. “A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”, escreveu ele. No sentido de que “nas espécies animais inferiores só se podem compreender os signos denunciadores de uma forma superior quando essa forma superior já é conhecida” (Marx: 1973). Essa forma de ver se aplica, por analogia, à evolução da sociedade, cujo exame permite flagrar, no passado, os sinais que a levaram ao que é hoje. E também a ver, nas tendências atuais, a promessa de uma evolução futura num rumo progressista e avançado.
Esse exame em busca dos sinais deixados ao longo do tempo só é possível se a história for uma ciência. Ela “é a ciência do tempo”, ensina Le Goff. E, por isso mesmo, seu objeto se oculta na multiplicidade infinita dos acontecimentos que cercaram a vida humana em seu transcorrer (Le Goff: 1984). É preciso descobrir nesse emaranhado as linhas de desenvolvimento que conduziram ao presente, desvendar os processos objetivos que ocorreram no mundo real, fora da consciência humana (e igualmente de qualquer consciência transcendental, não importa o nome que se dê a ela: deus, absoluto, espírito do tempo, ser, natureza, estrutura, etc.).
O estudo da história articula um “corpo de fatos verificados”, diz o historiador inglês Edward H. Carr. Ele ressalta que os fatos nunca “chegam a nós ‘puros’, desde que eles não existem nem podem existir numa forma pura: eles são sempre retratados através da mente do registrador” (Carr: 1982).
Estes são dois traços da história como ciência. Se, de um lado, ela parte do exame dos fatos que marcaram o desenrolar da aventura humana, essa verificação é feita pelo estudioso que é, ele próprio, um ser humano que não existe isolado mas é parte de um conjunto maior (uma classe social, uma sociedade, uma religião etc.) e adere a sistemas de valores ou ideologias, tem crenças, interesses e preferências. Os “seres humanos não são apenas as mais complexas e variáveis entidades naturais, mas também têm de ser estudados por outros seres humanos, não por observadores independentes, de uma outra espécie. Aqui o homem não mais se contenta, como nas ciências biológicas, em estudar sua própria composição física e reações físicas” mas ocorre uma “interação entre o observador e o que é observado, entre o cientista social e seus dados, entre o historiador e seus fatos”, e esta “parece ser uma feição distinta da história e das outras ciência sociais”, envolvendo o homem como sujeito e objeto, investigador e coisa investigada, sendo assim incompatível “com qualquer teoria do conhecimento que acentue um divórcio rígido entre sujeito e objeto” (Carr: 1982).
Este é um aspecto da complexidade da história. Caso relacionasse apenas fatos “desprovidos de explicação, a história se reduziria a uma série de observações toscas, sem grande valor intelectual”, escreveu outro historiador notável, Marc Bloch (2001).
As leis da história não existem no vazio, ou apenas na cabeça do investigador. Elas têm existência objetiva e cabe ao historiador demonstrá-las com base “nos fatos e a partir dos fatos”, que precisam ser compreendidos e analisados em seu contexto, como escreveu Herbert Marcuse em seu estudo sobre Hegel. “Os fatos, por si, não dizem nada; eles só respondem a perguntas teóricas apropriadas. A objetividade verdadeiramente científica exige, em lugar de uma recepção passiva de fatos dados, a aplicação de categorias corretas, que organizem os dados em sua significação real” (Marcuse: 1969).
Fatos que, escreveu o marxista polonês Adam Schaff, não se reduzem a um mero acontecimento, isolado, fechado em si próprio, mas só adquirem significação quando inseridos numa rede ampla de relações (que é mais complexa do que uma série). Um fato histórico só pode ser compreendido como parte de um conglomerado de inúmeros outros, aos quais se articula e aos quais dá sentido, e dos quais, por sua vez, extrai seu próprio sentido (Schaff: 1983).
Isto é, os fatos, reais e concretos, só podem ser entendidos dentro da sequência que os ilumina e dá sentido a eles – os atuais e também aqueles do passado. E sua sequência só pode ser compreendida a partir do trabalho conceitual, cerebral, do pesquisador que os examina e pode perceber, pela análise, o encadeamento entre eles a partir de sua generalidade, da relação de causa e consequência, de sua articulação no tempo e no espaço.
Esse trabalho conceitual, cerebral, a partir da análise de fatos reais e sua articulação concreta, elabora os recortes plenos de significado que esclarecem o desenvolvimento e permitem compreender suas contradições.
Os homens querem compreender, escreveu Marc Bloch. Daí resulta que só são autênticas as ciências que estabelecem “ligações explicativas entre os fenômenos”. Isso se aplica à história, que atua “em benefício do homem na medida em que tem o próprio homem e seus atos como material”. A história “não é a relojoaria ou a marcenaria”, mas o esforço “para compreender melhor”; ela “lida com seres capazes, por natureza, de fins conscientemente perseguidos” (Bloch: 2001).
A argumentação que nega sentido à história e a recusa como ciência revela o apego dogmático a fatos isolados, “puros”, ao particular, ao singular, ao meramente individual.
Esta tendência aparece em muitos escritores – entre eles Braudel, que cita, em apoio a ela, a frase do historiador francês Paul Mantoux que, em 1908, escreveu que o domínio da história se localiza no “particular, [no] que não acontece senão uma vez” (in Braudel: 1992).
Esta forma de pensar desconhece a dialética da parte e do todo, por um lado, e do particular, do singular e do universal, por outro. Dialética que já aparecia, em sentido positivo, na obra de Leopold von Ranke (1795-1886), o historiador dos fatos e dos documentos, para quem era “de valor incalculável, sem dúvida, a visão de determinado momento, em sua realidade, em sua evolução específica: o específico encerra dentro de si o geral” (cit in Holanda: 1979).
Constatação que, mais tarde, foi reafirmada por Carr: “o historiador não está realmente interessado no singular, mas no que é geral dentro do singular” (Carr: 1982).
O instrumento fundamental para esta distinção entre o singular, o particular e o universal é o pensamento que distingue as particularidades dos objetos analisados e destaca seus traços comuns. Esta ferramenta é a abstração, precondição de toda ciência, e principalmente da história.
No prefácio à primeira edição de “O Capital” , Marx comparou os procedimentos da ciência social, da economia política (e, por extensão, da história), com os das demais ciências: “Na análise das formas econômicas não podem servir nem o microscópio nem reagentes químicos. A faculdade de abstrair deve substituir a ambos” (Marx: 1983).
Esta ideia foi reafirmada, décadas mais tarde, por Marc Bloch, que a generalizou ao criticar o positivismo apoiado no paradigma das ciências da natureza. “Mas, exclamarão alguns, as linhas que você estabelece entre os diversos modos da atividade humana estão apenas em seu espírito; não, estão na realidade, onde tudo se confunde. Você usa portanto de ‘abstração’. De acordo, por que temer as palavras? Nenhuma ciência seria capaz de prescindir da abstração. Tampouco, aliás, da imaginação. É significativo, seja dito de passagem, que os mesmos espíritos, que pretendem banir a primeira, manifestem geralmente um mal humor pela segunda, é, das duas partes, o mesmo positivismo mal compreendido” (Bloch: 2001).
Referências
Bloch Marc – A apologia da história, ou, O ofício do historiador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001
Braudel, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo, Perspectiva, 1992.
Braudel, Fernand. Reflexões sobre a história. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
Carr Edward H. Carr. Que é história? Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982
Goff, Jacques Le. “História”, verbete à Enciclopédia Einaudi, v. 1, Memória- História. Porto,Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1984.
Holanda, Sérgio Buarque de (org.). “O atual e o inatual em L. von Ranke”. In Leopold von Ranke: história. São Paulo, Ática, 1979
Le Goff, Jacques. Verbetes “História” e “Progresso/Reação”. In Enciclopédia Einaudi – vol. 1 – Memória-História. Porto, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984
Marcuse, Herbert. Razão e Revolução – Hegel e o Advento da Teoria Social. Rio de Janeiro, Saga, 1969
Marx. Karl. O Capital, Livro I. São Paulo, Editora Abril Cultural, 1983
Ranke, Leopold von. Leopold von Ranke: história. Organizador da coletânea: Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, Ática, 1979.
Schaff, Adam. História e Verdade. São Paulo, Martins Fontes, 1983

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