Decreto que intensificou autoritarismo na ditadura militar tem sido evocado por integrantes do governo.
Por Daniela Rebello
Há 51 anos, neste mesmo 13 de dezembro, vivíamos um dos períodos mais sombrios da nossa história. Na ocasião, foi promulgado do Ato Institucional Número 5 (AI5), que fechou o Congresso e cassou direitos políticos daqueles que se opunham à ditadura militar. A medida foi efetivada pelo então presidente Marechal Arthur Costa e Silva, autorizando, na Constituição brasileira, a prática de crimes contra a humanidade.
A constituição de 1967 aprovou e excluiu da apreciação judicial os atos institucionais 1, 2, 3 e 4 – e os atos deles decorrentes. Por sua vez, o AI5 manteve a referida constituição, incorporando modificações em seu texto. Com essa justificativa legal, a partir daquele momento estavam protegidos pela Constituição todos aqueles que, escoltados pelo governo, se sentiram à vontade para cometer atrocidades de todo o tipo.
Em datas emblemáticas, antigos fantasmas costumam ressurgir na boca de algozes que insistem em se perpetuar no poder. A palavra “anistia” vem do grego amnestía, que significa esquecimento. Ao longo dos mais de 500 anos de história contada do Brasil, a amnestía é utilizada, por eles, sempre que conveniente, na tentativa de apagar, superar ou fazer cair no esquecimento severos momentos em que a democracia foi colocada em xeque.
Algumas características da história do Brasil podem explicar a perpetuação das marcas da violência e da tirania no país. As não rupturas radicais dos processos escravista e ditatorial trazem consequências que corroboram com a continuação de capítulos violentos e sua legitimação pelo Estado. A violência policial que matou Gustavo, Dennys, Marcos, Denys, Luara, Gabriel, Eduardo, Bruno e Mateus em um baile funk na periferia de São Paulo é também a violência escravocrata que foi incorporada pela lógica institucional, fazendo com que, meio milênio depois, não só a disparidade educacional e a desigualdade social mas, também, a baixa expectativa de vida tenha cor e endereço certo.
Da mesma maneira, as mortes de Edson Luis, Fernando Santa Cruz, Vladimir Herzog e Honestino Guimarães, que foram antes legitimadas em nome da ordem pública e segurança nacional, hoje são amnestíadas e perdoadas, porém jamais esquecidas. Em cada período uma justificativa diferente é apresentada, mas todas elas são fundamentadas por um elemento comum: o de que um lado está a tirania de quem reivindica o direito de matar e, do outro, aqueles que lutam para sobreviver.
Na ocasião do anúncio do decreto que tornou a ditadura ainda mais dura, Jarbas Passarinho, então ministro do Trabalho e senador, disse, assumindo a real intencionalidade da medida legal: “Eu seria menos cauteloso do que o próprio Ministro quando diz que não sabe se o que restou caracterizaria a nossa ordem jurídica como não sendo ditatorial. Eu admitiria que ela é ditatorial.”
Não obstante, o ato não teve como alvo apenas grupos violentos ou grupos de esquerda. Políticos de direita, que inclusive apoiaram e trabalharam para o regime militar, também foram perseguidos, presos e cassados.
Veja 5 motivos para repudiar o AI-5 e entenda porque precisamos nos preocupar com sua volta nos dias de hoje.
• Fechamento do Congresso Nacional
DITADURA: “O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República.” Ato Institucional nº 5
Desde sua criação, o Parlamento brasileiro foi dissolvido ou fechado 18 vezes, 3 delas durante a ditadura militar. Com o AI-5, o Poder Executivo foi autorizado a “legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas Constituições” e o presidente da República a decretar intervenção nos estados e municípios, substituindo governadores e prefeitos por interventores escolhidos pelo regime. Mesmo com problemas e insuficiências, o poder legislativo é indispensável em uma democracia que tem como pilar em sua Constituição a soberania popular.
AMEAÇA À DEMOCRACIA: “A atual Constituição garante a intervenção das Forças Armadas para a manutenção da lei e da ordem. Sou a favor, sim, de uma ditadura, de um regime de exceção, desde que este Congresso dê mais um passo rumo ao abismo, que no meu entender está muito próximo.” Jair Bolsonaro
Cassação de mandatos e direitos políticos
DITADURA: “Art. 4º – No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.” AI-5.
O pretexto utilizado para a implementação do AI-5 envolveu diretamente a cassação do mandato de um deputado. Diante de um discurso com pouca repercussão do então deputado Moreira Alves em que pediu aos militares para boicotarem o regime, o governo apresentou decreto que permitia maior controle sobre o Congresso, o que propiciou a “cassação de mandatos eletivos federais, estaduais e municipais e suspensão dos direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos”.
O ato também incluía: I – cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função; II -suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais; III – proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política; IV – aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança: a) liberdade vigiada; b) proibição de frequentar determinados lugares; c) domicílio determinado.
Isto posto, foram cassados 168 deputados em decorrência do AI-5. De modo igual, inúmeras pessoas e personalidades, artistas ou qualquer um que fosse considerado inimigo pelo governo tiveram seus direitos cassados, foram retirados da vida pública e exilados do Brasil.
AMEAÇA À DEMOCRACIA: “Os militares assumiram o poder… E assim o Brasil deu início a 20 anos de glória, período em que o povo gozou de plena liberdade e de direitos humanos… O povo, iludido, lamentavelmente trocou tudo isso por voto.” Jair Bolsonaro
• Criação do DOI CODI e proibição de habeas corpus
DITADURA: “Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.” AI-5.
No primeiro ano da ditadura foi criado o Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). Existia um centro dentro de cada unidade do Exército, que funcionava como espaço de assassinatos e torturas comandadas pelo governo. Foi no DOI-CODI de São Paulo, sob o comando de Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi assassinado o jornalista Vladmir Herzog, fato divulgado na época como um episódio de suicídio.
Durante o AI5, a suspensão da garantia do habeas corpus expandiu o número de casos de violência e assassinatos fora dos porões da ditadura. O Estado exercia o poder legal sobre o preso político sem direito à proteção jurídica ou à defesa e com interrupção de direitos fundamentais. Com o dispositivo de Habeas corpus suprimido, era encerrada a possibilidade de justiça diante de uma prisão injusta ou ilegal, permitindo inclusive detenções sem nenhuma acusação formal. Posteriormente, os presos políticos eram julgados pela Justiça Militar.
AMEAÇA À DEMOCRACIA: “[O policial] entra, resolve o problema e, se matar 10, 15 ou 20, com 10 ou 30 tiros cada um, ele tem que ser condecorado, e não processado” Jair Bolsonaro
• Impacto na Educação e Ciência
DITADURA: “Art. 1º Comete infração disciplinar o professor, aluno, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino público ou particular que:
IV – Conduza ou realize, confeccione, imprima, tenha em depósito, distribua material subversivo de qualquer natureza;
VI – Use dependência ou recinto escolar para fins de subversão ou para praticar ato contrário à moral ou à ordem pública.” Constituição de 1967
O que atinge mais uma ditadura do que a inteligência para enfrentá-la? Escolas e universidades, por serem locais de reflexão, pesquisa e formação de opinião, foram desde o início um dos grandes alvos da ditadura militar. O decreto-lei nº 477, mais conhecido como “AI-5 das universidades”, definia a linha tênue entre liberdade e “infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino público ou particulares”.
Aplicado o decreto, cerca de mil cientistas, professores e estudantes foram para o exílio após perderem direitos políticos, serem aposentados compulsoriamente e sofrerem perseguição. Educadores consagrados como Paulo Freire, Darci Ribeiro, Anísio Teixeira (encontrado morto) e Florestan Fernandes foram perseguidos, censurados e se exilaram. Muitos também encontraram espaço nas principais universidades do mundo, como Yale, Princeton, MIT e Sorbonne. Outros foram torturados, mortos e permanecem desaparecidos. Como punição, os professores infratores não podiam lecionar em nenhuma outra instituição por cinco anos, e os alunos proibidos de estudar em alguma Universidade por três anos. Organizações estudantis viveram em clandestinidade, como é o caso da União Nacional dos Estudantes..
AMEAÇA À DEMOCRACIA: “Universidades que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas reduzidas.” Abraham Weintraub, Ministro da Educação
• Censura prévia da cultura e comunicação
DITADURA: “Previsão do Tempo
Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx: 38º, em Brasília. Mín: 5 º, nas Laranjeiras.” Jornal do Brasil, 14 de dezembro de 1968
Essa foi a previsão do tempo publicada no Jornal Brasil um dia após o AI-5. O órgão responsável por fiscalizar e censurar os meios de comunicação e as produções artísticas durante a ditadura era a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), que anteriormente possuía a função de controlar as fugas morais e bons costumes e então se expandiu ao controle político.
Após o AI-5, a censura prévia se estendeu à imprensa. Nada era impresso ou noticiado sem que antes passasse pelo crivo, análise e autorização do comando de fiscalização do Conselho Nacional de Telecomunicações (CONTEL). Os principais veículos de comunicação, que não foram perseguidos e fechados pela ditadura, trabalhavam com censores dentro da redação. A justificativa era que havia uma infiltração de comunistas dentro dos meios de comunicação, com objetivo de desmantelar a imagem do regime militar.
A ditadura, o controle e a censura exigem reinvenção e, por isso, jornalistas, músicos, artistas e cineastas inventaram novas maneiras de exporem suas críticas sociais e de se oporem ao regime. Criaram codinomes, códigos e mensagens subliminares para não serem pegos pelos censores. Mesmo assim, durante o AI-5 a perseguição à classe artística era tamanha que muitos se exilaram após prisões e perdas de direitos.
AMEAÇA À DEMOCRACIA: “A gente não vai perseguir ninguém, mas o Brasil mudou. Com dinheiro público não veremos mais certo tipo de obra por aí. Isso não é censura, isso é preservar os valores cristãos, é tratar com respeito a nossa juventude, reconhecer a família” Jair Bolsonaro
O Brasil é um dos poucos países a não condenar os responsáveis por crimes cometidos na ditadura. A Lei da Anistia, aprovada ainda no governo militar, concede perdão do Estado aos agentes acusados de violação de direitos humanos, torturas, mortes e sequestros. A Lei já foi questionada pela ONU, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e outras organizações que contestam que ela é incompatível com a própria Constituição Brasileira. Mesmo assim, em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) tomou a decisão de manter sua vigência.
Essa corda bamba em que vivemos, entre progressos e ameaças à democracia, exige de nós grandes esforços de luta pela sua manutenção, mas também, principalmente, de preservação da memória e história do país. Nossa Constituição consagra a soberania popular, e tem como pilar a garantia da dignidade humana. No entanto uma democracia dividida entre os que têm direitos e os que morrem sem ter acesso a eles, precisa ser urgentemente aprimorada.
Daniela Rebello
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Constituição 67
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm
AI5
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm
Lei nº 5.536 – Novas regras de censura para obras teatrais e cinematográficas – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L5536.htm
Decreto-Lei nº 1.077 – Censura Prévia
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del1077.htm
Fonte: UJS
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