Kassab criou um mote genial para o PSD: “Não é de esquerda, de direita e nem de centro”, diz ele, para definir o indefinível. O PSD surge para ser situação em toda parte, pouco importando quem esteja por cima. O que importa é estar por cima. O partido nasce como situação em 18 estados, em coligações que abrangem o PT, o PMDB, o PSDB e o PSB.
Gilberto Maringoni, via Carta Maior
Há muita coisa em comum entre o surgimento do Partido Social Democrático (PSD), do prefeito Gilberto Kassab, e a instalação da chamada Comissão da Verdade, aprovada pela Câmara dos Deputados. Elas vão muito além de uma proximidade no tempo e no espaço. Trata-se da volta da fórmula que possibilita a polos contrários quase nunca criarem curto-circuito no Brasil. Comecemos pelo PSD.
Kassab criou um mote genial para a agremiação: “Não é de esquerda, de direita e nem de centro”, diz ele, para definir o indefinível. O PSD surge para ser situação em toda parte, pouco importando quem esteja por cima. O que importa é estar por cima. O partido nasce como situação em 18 estados, em coligações que abrangem o PT, o PMDB, o PSDB e o PSB. Em várias localidades, a legenda alia-se ao PCdoB, ao PV e ao DEM.
Kassab, talvez sem querer, detonou uma verdadeira reestruturação partidária que pode balizar a vida institucional nos próximos anos. Há o rubicão do registro a ser obtido no início de outubro, é verdade. Mas nada indica que o alcaide paulistano parará por aí.
Político apagado até ser reinventado por José Serra, que o escolheu para vice-prefeito em sua chapa em 2006, Kassab deixa de ser uma expressão local para fazer articulações mais altas. Suas possibilidades só frutificaram diante da virtual falência dos partidos mais claramente identificados com a direita no Brasil. O fato não se deveu a uma derrota, mas a um acerto.
Aliança de contrários
Os governos do PT no plano federal tiveram a notável característica de atrair e abrigar contrários na composição do governo e da “base aliada”. Ninguém mais se espanta de ver contemplados no imenso guarda-chuva oficial políticos de primeira linha da ditadura militar (1964–1985), como o senador José Sarney;destacadas lideranças ruralistas, como a senadora Kátia Abreu; representantes do grande capital, como Jorge Gerdau Johannpeter e Henrique Meirelles; sindicalistas da CUT, como Arthur Henrique; lideranças do MST, como o deputado Walmir Assunção; e um grupo trotskista, como a corrente O Trabalho. Não é algo novo. Getulio Vargas já cativara latifundiários do PSD, sindicalistas do PTB e do PCB, dirigentes industriais e correntes nacionalistas.
A questão está em definir que tipo de projeto poderia galvanizar setores que, teoricamente, teriam interesses díspares. Como unir os que vivem da especulação, a grande indústria, o agronegócio exportador, a nata do movimento sindical, os trabalhadores sem terra e os miseráveis do País?
Somente com uma ação de governo que satisfaça os poderosos, ofereça melhorias aos fracos e amorteça demandas sociais agudas com paliativos eficazes. E, especialmente, que não imponha perdas aos primeiros. É uma ação sofisticada, que demanda crescimento econômico, obtido por meio de mais ingresso de recursos externos – via diversificação de exportações e capacidade de atrair investimentos em moeda forte – e alargamento do mercado interno. Lula colheu imenso sucesso ao realizar isso tudo sem mexer nos fundamentos da política econômica de seu antecessor. Mesmo a distribuição desigual de seus saldos atenua demandas seculares em um país de imensas disparidades sociais.
Mudança sem transformação
Uma política capaz de contemplar tais ações é uma política que muda sem transformar. Que encontra brechas para alargar o modelo econômico vigente sem tocar em seus pilares. Assim, o crescimento do mercado interno se faz principalmente através da expansão de crédito. Os números do Banco Central são eloquentes: de pouco menos de 20% em julho de 2004, o total de crédito ofertado na economia chegou a 45,7% do PIB em junho de 2010. Os empréstimos do BNDES, com juros subsidiados (TJLP) de 6% ao ano, saltaram de R$35,1 bilhões em 2003, para R$140 bilhões em 2010. A isso se somam aumentos reais no salário mínimo, políticas sociais focadas e expansão do emprego, possibilitados pela expansão econômica. São avanços? Sim, são avanços notáveis!
Ao mesmo tempo, não há reforma agrária, a transferência de recursos ao setor financeiro, via pagamento de juros, bate recordes e o governo anuncia a volta das privatizações, através das concessões dos aeroportos à iniciativa privada.
A representação tradicional da direita brasileira – PSDB, DEM e PPS – ficou sem discurso, sem bandeira e, pior, sem base social. Seu eleitorado tradicional definhou. Os setores mais pobres e desorganizados mudaram o voto com a melhoria de seu padrão de vida. A essa direita, que não vive longe da máquina pública, dos financiamentos e dos cargos resta a saída de aderir ao governo. O PSD é a ponte para a adesão sem culpa e sem turbulências. É uma espécie de câmara de descompressão, que adapta interesses e amolda demandas. Mais do que o PMDB, que é ao mesmo tempo situação e oposição, o PSD pode ser a métrica da elasticidade de propósitos, sem que isso salte muito à vista.
Como classificar uma política de governo que abrigue tal conduta? Ela certamente não é de esquerda. Ao mesmo tempo, quando se olha o que os ultraliberais brasileiros pretendem – como na reunião de ex-integrantes de equipes econômicas, realizada há pouco mais de um mês no Instituto FHC –, podemos concluir que tampouco o governo pratica uma política de direita. Alguns aspectos poderiam ser classificados como centristas. O fato é que o mote de Gilberto Kassab – “nem de esquerda, nem de direita e nem de centro” – parece ter contaminado a ação oficial.
Tudo funcionará se ninguém fizer marola.
Evitar marolas
Uma das marolas significativas pode ser representada pela apuração dos crimes da ditadura na Comissão da Verdade. Não apenas vários políticos do regime militar seguem na ativa, como setores do empresariado que financiam campanhas eleitorais de diversos partidos apoiaram e financiaram a tortura.
Se for fundo na apuração do passado, a comissão vai mexer no presente.
Assim, é urgente monitorar seus passos, restringir suas atribuições, limitar suas iniciativas e dispersar seus objetivos para que suas conclusões não sejam incômodas. Tenta-se fazer dela o que o filósofo esloveno Slavoj Zizek fala sobre os novos tempos, em seu livro Bem-vindo ao deserto do real (Boitempo, 2003):
“No mercado atual, encontramos uma série ampla de produtos desprovidos de suas propriedades malignas: café sem cafeína, cremes sem gordura, cerveja sem álcool… e a lista continua: que tal sexo virtual enquanto sexo sem sexo, a doutrina de Colin Powell da guerra sem baixas (do nosso lado, é claro) enquanto guerra sem guerra, a redefinição contemporânea da política como arte da administração especializada enquanto política sem política...”
Analogamente, podemos dizer que se pretende uma Comissão da Verdade sem “propriedades malignas”. Uma Comissão que não acuse, não incomode e não puna. Uma Comissão que siga o exemplo do PSD e não crie problemas à esquerda, à direita ou ao centro.
Se isso acontecer, o Brasil perderá a grande chance de esclarecer não apenas o que ocorreu naqueles anos terríveis, mas de jogar luz em grandes acordos atuais. Mudar tal situação é possível apenas se houver muita pressão da sociedade. Caso ela tenha sucesso, esquerda, direita e centro podem voltar a ter contornos nítidos como sempre tiveram e haverá avanços significativos na vida nacional. Caso contrário, a doutrina Kassab triunfará...
Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela USP e autor deA Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chavez (Editora Fundação Perseu Abramo).
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