O algoz e a vítima |
Será possível escapar em 2018 dos acordos partidários que produziram a crise institucional?
por Luiz Alberto Marques Vieira Filho*
O golpe de 2016 jogou a esquerda em uma profunda depressão e crise de identidade. A magnitude deste processo foi tal que os avanços nos 13 anos de governos petistas são ignorados e há completa perda do raciocínio político.
Não é verdade que colocar 40 milhões na classe média, tirar o Brasil do Mapa da Fome e dobrar o número de matrículas em universidade federais seja algo desprezível. Ao contrário, mostra a capacidade da política em transformar a realidade e incluir dezenas de milhões de brasileiros à margem das benesses da civilização.
Todos esses ganhos sociais decorreram de políticas públicas implementadas por uma coalização política liderada por um partido de centro-esquerda, o PT, mas que incluía uma ampla gama de partidos de centro-direita. A partir de 2015, essa coalização entrou em crise e um golpe parlamentar foi perpetrado contra a presidente Dilma Rousseff, uma afronta à democracia e aos seus mais de 54 milhões de votos.
Na visão de muitos militantes de esquerda, a política de alianças haveria se tornado inexoravelmente disfuncional e haveria a possibilidade de outros arranjos políticos que a tornasse desnecessária. O primeiro ponto a ser compreendido é que em 2015 o Brasil entrou em uma grave recessão de 3,5%. Todas as vezes na história republicana que tivemos recessões desta magnitude, o resultado foi a ruptura institucional, independentemente da linha ideológica do governo de plantão.
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Foi assim na recessão de 1930 e o fim da elitista República Velha, no triênio recessivo de 1981/1983 e o fim da ditadura e em 1990 com Fernando Collor. Portanto, é preciso compreender que o tecido social e político brasileiro não suporta recessões de médio porte como as mencionadas.
Ainda em 2014, o economista Pedro Paulo Zahluth Bastos, grande conhecedor de economia e da história do Brasil alertou Dilma sobre as consequências das políticas recessivas que estava gestando: “Se ceder à coação política implícita no terrorismo de mercado, Dilma Rousseff arrisca ganhar credibilidade perante o mercado, mas arriscar sua credibilidade perante o eleitorado, exatamente quando mais precisar dela para lutar pela reforma política que diz ser sua prioridade legislativa”.
Bastos prosseguia em seu artigo: “Ou quando seu governo for julgado politicamente pelos possíveis desvios da Petrobras. Arrisca ganhar reputação perante o mercado, mas desmobilizar a energia e o apoio daqueles que a elegeram, exatamente quando for chamada a disputar o terceiro turno”.
O resultado foi ainda mais trágico do que aquele alertado pelo economista. Ao se deslegitimar com sua base, Dilma se tornou dispensável ao capital, que compreendeu que poderia dar as cartas sem a mediação do PT. Este ponto jamais foi corretamente compreendido tanto pelos políticos de esquerda quanto pela equipe econômica, que em nenhum momento esboçou movimentos para mitigar a recessão e voltar ao tabuleiro da política.
Outra questão importante é que os partidos da coalização estavam sob o cerco da Operação Lava Jato, que, além da demanda por impunidade por políticos corruptos, encontrava críticas legitimas. A operação sempre se utilizou de práticas questionáveis como os diversos vazamentos, o desprezo por garantias constitucionais e outras ilegalidades jamais eficazmente combatidos pelo Ministério da Justiça.
Assim, a travessia do Rubicão da crise política se deu com dois pontos que poderiam ter sido evitados. Ainda é preciso explicar, porém, a inevitabilidade desses tipos de alianças. Para isso, recorro mais uma vez ao historiador Caio Prado Júnior, para quem a sociedade brasileira é marcada pela inexistência de “nexo moral”, ou seja, por frágeis e superficiais relações sociais e econômicas.
“Numa população assim constituída originariamente e em que tal processo da formação se perpetuava e se mantinha ainda no momento que nos ocupa, o primeiro traço que é de esperar, e que de fato não falhará à expectativa, é a ausência de nexo moral”, escreveu o historiador. “Raças e indivíduos mal se unem. Não se fundem num todo coeso: justapõem-se antes uns aos outros; constituem-se unidades e grupos incoerentes que apenas coexistem e se tocam.”
E além: “Os mais fortes laços que lhes mantêm a integridade social não serão senão os primários e mais rudimentares vínculos humanos, os resultantes direta e imediatamente das relações de trabalho e produção: em particular, a subordinação do escravo ou do semiescravo ao seu senhor. Muito poucos elementos novos se incorporarão a este cimento original da sociedade brasileira, cuja trama ficará assim reduzida quase exclusivamente aos tênues e sumários laços que resultam do trabalho servil.”
A ausência de “nexo moral” na sociedade brasileira tem fortes implicações políticas e eleitorais. Na falta de elementos orgânicos de aglutinação social e política, caberá ao dinheiro o papel de “cimento” dessas relações que permitirá a eleição de inúmeros políticos.
Nas eleições, muito mais do que compromissos históricos, o importante para um deputado federal se eleger é a quantidade de deputados estaduais, prefeitos e vereadores que patrocina. É por meio dessa aliança fundada no dinheiro que a maioria dos parlamentos se elege. É claro que desde a primeira edição de Formação do Brasil Contemporâneo de Caio Prado Jr., em 1942, muita coisa mudou. Tivemos um processo de substituição de importações relevante, universalizamos a educação básica (mesmo que com qualidade duvidosa), e ampliou-se a infraestrutura de transportes.
O fim do financiamento empresarial de campanha pode trazer alguma transparência às relações entre o público e as grandes empresas capitalistas, mesmo com fundos insuficientes para a operacionalização da política. Mas cabe lembrar que 2014 assistiu a uma das maiores fragmentações do Parlamento que tivemos, mostrando que o “cimento social” ainda não é dos melhores.
Desta forma, sem tratarmos as causas, como a ausência de “nexo moral”, não poderemos imaginar resultados distintos nas maneiras das negociações políticas e na construção do arco de alianças. A fragmentação social ainda está presente, queiramos ou não, e as relações políticas permanecerão as mesmas caso tal quadro permaneça inalterado.
Fonte: Carta Capital
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