A antropóloga Natália Maria já fez pesquisas em que pessoas negras declararam brancas: " A resposta é menos consciente do que deveria ser ".
No Censo de 2010, 55,9% dos entrevistados do DF se declararam pretos ou pardos, um crescimento expressivo em relação à pesquisa de 2000. Segundo especialistas, não houve redução no número de brancos, mas as ações afirmativas têm provocado mudanças
Fonte: Helena Mader/Correio Braziliense
O preconceito racial é um mal ainda enraizado no Distrito Federal, mas a sociedade brasiliense deu passos importantes rumo à igualdade na última década. Em 2000, quase metade dos moradores da capital se declararam brancos durante o Censo, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ao todo, 49,1% dos entrevistados afirmaram ter a pele branca — entre eles, muitos negros constrangidos de declarar a própria cor. No último levantamento, feito em 2010, esse número caiu expressivamente. No ano passado, a realidade se inverteu: 55,9% dos candangos se declararam negros — pretos ou pardos — e apenas 42% dos brasilienses disseram aos pesquisadores que se viam como brancos.
Os números revelam mudanças significativas na sociedade. Para especialistas, a redução do percentual não representa uma queda no contigente de brancos em Brasília. Na realidade, parte dos pretos e pardos, que no passado se declaravam brancos, passaram a se identificar de outra forma para os pesquisadores do IBGE. As políticas afirmativas e as mudanças culturais estimularam essa alteração na identidade dos brasilienses. A mesma tendência foi observada nos dados consolidados do país e de vários estados brasileiros.
O total de negros na população supera em 15 pontos percentuais a quantidade de pessoas que afirmaram ser brancas. Mas a realidade dos pretos e pardos ainda é mais difícil do que a do resto da população. Os brancos ganham muito mais do que os negros, que se concentram principalmente nas cidades mais pobres do Distrito Federal. No Brasil, o rendimento médio mensal das pessoas brancas alcançou R$ 1,5 mil, enquanto o dos cidadãos pretos e pardos foi quase a metade: R$ 833 para os negros e R$ 844 para os pardos.
Em Brasília, a desigualdade é também geográfica. No Lago Sul, bairro com a maior renda per capita da cidade, 78,6% dos moradores afirmaram ao IBGE ser brancos. No Recanto das Emas e em Santa Maria, duas das regiões que concentram a maior parte dos brasilienses carentes, apenas 31% dos habitantes fizeram a mesma declaração. Nessas duas regiões de baixa renda, mais de 65% dos moradores disseram ser pretos ou pardos.
Ações afirmativas
A antropóloga Natália Maria Alves Machado, 24 anos, conhece de perto o motivo das distorções registradas nos últimos censos. Ativista do movimento negro, ela é integrante do Nosso Coletivo Negro e da Rede Mocambos. Como pesquisadora, já aplicou questionários e viu pessoas pretas se declarando brancas ou pardas. “O racismo ainda persiste, especialmente em situações que dependem do olhar externo, como o mercado de trabalho ou as abordagens policiais. A resposta nesses questionários ainda é menos consciente do que deveria ser”, conta Natália.
Para a antropóloga, as ações afirmativas tiveram papel fundamental na transformação da sociedade e refletiram nos números apurados pelo IBGE. “Hoje, há um respaldo simbólico. As pessoas se sentem mais à vontade para se declararem como negras. A cor da pele significa muito, representa um lastro étnico e cultural que interfere nos rumos da pessoa no mundo”, explica Natália. Mas, para ela, ainda é preciso avançar muito. “O principal, a partir de agora, é a manutenção e a ampliação das ações afirmativas, como a inclusão no ensino superior e na pesquisa”, finaliza a antropóloga, que fez parte da primeira turma que ingressou na Universidade de Brasília pelo sistema de cotas para negros, em 2004.
Entre todas as políticas afirmativas criadas na última década, o programa de inclusão nas universidades é apontado como uma das mais importantes e efetivas. Como o rendimento entre os pretos e pardos ainda é muito inferior, o melhor caminho para mudar essa realidade é a educação, especialmente com o aumento de negros no ensino superior, afirmam especialistas.
O professor da Universidade de Brasília Nelson Inocêncio, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da instituição, vê resultados positivos na luta por igualdade racial. Ele cita a eleição de Barack Obama, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, como um exemplo das mudanças e defende a ampliação de políticas afirmativas. “É necessário entender que toda sociedade que se constitui de maneira desigual tem que ter política diferenciada”, justifica Nelson Inocêncio.
Ele explica que as mais efetivas ações para reduzir o preconceito no país começaram a ser implantadas depois da Conferência de Durban contra o racismo, realizada há 10 anos. “A declaração de Durban, da qual o Brasil foi signatário, representou o primeiro compromisso de combate ao racismo. Ali, começamos a desenvolver algumas ações importantes”, lembra o especialista. “Mas não bastam leis e ações, a sociedade tem que estar convencida de que não temos outra saída, de que precisamos de políticas afirmativas. O grande desafio é superar o mito da democracia racial. As relações entre brancos e negros sempre foram tensas e não podemos falar em democracia sem superarmos o racismo”, finalizou Nelson.
Mudanças
Ativista do movimento negro e dona do primeiro salão especializado em penteados étnicos, Graça dos Santos acompanhou de perto essas mudanças na sociedade. Há 20 anos, ela lembra, ninguém ousava ostentar um penteado estilo black power. “O cabelo tinha que ser esticado, sem nenhuma ondulação sequer. Mas, com o tempo, as pessoas se sentiram à vontade para se afirmar negras e, hoje, a maioria não nega mais a identidade, usando cabelos com tranças ou dreads, por exemplo”, comenta Graça.
Mas a empresária e ativista lamenta que o racismo ainda seja forte no Brasil e no Distrito Federal. Ela também luta por mais igualdade entre negros e brancos. “A maioria dos pobres e analfabetos é negra. Não houve políticas para atender a esse segmento da população. Investimentos em educação e ações afirmativas são as saídas para mudar essa realidade”, defende Graça.
Especialistas afirmam que uma das medidas mais urgentes para garantir a igualdade racial é a implantação da Lei Federal nº 10.639, de 2003. Essa legislação altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e torna obrigatório o ensino de história e cultura da África e das populações negras brasileiras nas escolas de ensino fundamental e médio de todo o país. No Distrito Federal, a lei ainda não é cumprida.
A secretária de Promoção da Igualdade Racial do Distrito Federal, Josefina Serra dos Santos, afirma que técnicos da pasta têm feito reuniões periódicas com representantes da Secretaria de Educação. A ideia é cumprir a Lei 10.369. “Brasília tem que ser referência na luta por igualdade racial. Ainda é difícil assumir que é negro no Brasil e somente com a educação será possível mudar essa realidade”, afirma Josefina. “A discriminação do dia a dia dói muito e acaba com a autoestima dos negros, por isso muitos preferem se declarar como brancos no questionário do IBGE. Mas a sociedade está mudando e acredito que o percentual de negros no próximo censo será ainda maior”, comenta Josefina.
Reconhecimento
A coleta de informações a respeito da cor e da raça dos entrevistados pelos recenceadores do IBGE tem como base a autodeclaração. Os pesquisadores não interferem no resultado, ou seja, são os participantes do censo que declaram ser pretos, pardos, brancos, amarelos, brancos ou indígenas.
Indígenas
O censo do IBGE mostrou que mais de 6 mil indígenas vivem hoje no Distrito Federal. Mesmo com um crescimento populacional de 25% no DF na última década, a quantidade de indígenas caiu tanto percentualmente quanto em valores absolutos. Em 2000, eles eram 7.154 e, em 2010, apenas 6.128.
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