domingo, 9 de julho de 2023

Castro Alves, o poeta dos homens livres

 


Há um preconceito de séculos que reescreve a sua história, de poeta dos escravos a poeta branco. Mas o que importa agora, nestas linhas, é o seu lugar de poeta de homens e mulheres livres, e do seu lugar único na poesia brasileira.

Machado de Assis escreveu sobre o gênio de Castro Alves em fevereiro de 1868, isso quando o poeta ainda possuía 20 anos:

“A musa do Sr. Castro Alves tem feição própria. Se se adivinha que a sua escola é a de Vítor Hugo, não é porque o copie servilmente, mas porque uma índole irmã levou-o a preferir o poeta das Orientais ao poeta das Meditações. Não lhe aprazem certamente as tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer antes as cores vivas e os traços vigorosos da ode. Como o poeta que tomou por mestre, o Sr. Castro Alves canta simultaneamente o que é grande e o que é delicado, mas com igual inspiração e método idêntico; a pompa das figuras, a sonoridade do vocábulo, uma forma esculpida com arte, sentindo-se por baixo d’esses lavores o estro, a espontaneidade, o ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duas qualidades da poesia: a forma e o estro. Os verdadeiros poetas são os que as têm ambas. Vê-se que o Sr. Castro Alves as possui; veste as suas ideias com roupas finas e trabalhadas… “.

 

Manuel Bandeira, um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos,  analisou definitivo a poesia de Castro Alves:

“Ao livro ‘Os Escravos’ pertenceriam ‘Vozes d’África’ e ‘O Navio Negreiro’, os dois poemas em que o poeta atingiu a maior altura de seu estro. O que indignava o poeta era ver que o Novo Mundo, ‘talhado para as grandezas, pra crescer, criar, subir’, a América, que conquistara a liberdade com formidável heroísmo, se manchava no mesmo crime da Europa.

Em Castro Alves, o épico social desmedindo-se em violentas antíteses, em retumbantes onomatopeias. A este último aspecto há que levar em conta a intenção pragmática dos seus cantos, escritos para serem declamados na praça pública, em teatros ou grandes salas —, verdadeiros discursos de poeta-tribuno…. E há que reconhecer nele…. a maior força verbal e a inspiração mais generosa de toda a poesia brasileira”.

Em mais de um lugar já li que é importante um escritor evitar o engajamento panfletário. Falam até que a literatura engajada é a antiliteratura (!!!). Mas essa opinião sobre literatura engajada é comum em novas gerações acadêmicas, que reduzem a visão do mundo da arte a “linguagem”. A defesa da vida, segundo os participantes da nova onda, deve ficar para o discurso político, em outra instância e lugar. E assim caminham para uma literatura asséptica, de palavras em sua pura ausência da realidade suja, fora da defesa de pessoas e do mundo.

Mas o que é o engajamento panfletário? Será aquele em que a revolta contra a ordem injusta do mundo aparece nas páginas de uma obra? Então haveríamos de expurgar do conhecimento humano um poema como O Navio NegreiroE aqui bem caberia a ressalva de que toda grande obra literária é panfletária, que nos perdoem os mais puros estetas. Mas este não é ainda o momento de mostrar o panfletário em Tolstói, Graciliano Ramos, Drummond, e até mesmo em Machado de Assis, pasmem

No entanto, mais de um crítico já considerou o verso “brisa do Brasil beija e balança” como um dos mais belos de toda a língua portuguesa. Trata-se de uma aliteração, que repete o B, bela e magnífica, sem dúvida, Mas prefiro outros versos do poema.

Há escritores que são lembrados por uma só obra, embora tenham escrito outras. Quem me chega de imediato à memória é Juan Rulfo, com o seu imortal Pedro Páramo. Na poesia brasileira, para não cometer o sacrilégio de lembrar João Cabral de Melo Neto apenas, “apenas” por Morte e Vida Severina, temos Augusto dos Anjos com  Eu e Outras Poesias, que foi mesmo o seu livro único. Mas no caso de Castro Alves, autor de tantos poemas, para expressar melhor a sua altura e gênio, bastaria lembrar O Navio Negreiro. “Bastaria” com muitas aspas, se fosse possível. Pois já no começo do seu fundamental e inesquecível poema, Castro Alves prepara o voo para uma altura até hoje nunca alcançada por nenhum  poeta brasileiro:

“Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas”

Esse chamamento não é passageiro, retórico vazio. Pois logo veremos por que Castro Alves pede as asas do albatroz em lugar dos deuses invocados  por outros poetas.

“Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!

Desce mais… inda mais… não pode olhar humano

Como o teu mergulhar no brigue voador!

Mas que vejo eu aí… Que quadro d’amarguras!

É canto funeral!… Que tétricas figuras!…

Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!….

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus!

Se é loucura… se é verdade

Tanto horror perante os céus?!

Ó mar, por que não apagas

Co’a esponja de tuas vagas

De teu manto este borrão?…

Astros! noites! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão! ….”

E que altura o poeta atinge:. Eu escrevi dois pontos após a frase anterior, mas o que merece é ponto de exclamação: que altura o poeta atinge!

“Existe um povo que a bandeira empresta

P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…

E deixa-a transformar-se nessa festa

Em manto impuro de bacante fria!…

Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,

Que impudente na gávea tripudia?

Silêncio. Musa… chora, e chora tanto

Que o pavilhão se lave no teu pranto!…

Auriverde pendão de minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra

E as promessas divinas da esperança…

Tu que, da liberdade após a guerra,

Foste hasteado dos heróis na lança

Antes te houvessem roto na batalha,

Que servires a um povo de mortalha!…

Fatalidade atroz que a mente esmaga!

Extingue nesta hora o brigue imundo

O trilho que Colombo abriu nas vagas,

Como um íris no pélago profundo!

Mas é infâmia demais!… Da etérea plaga

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!

Andrada! arranca esse pendão dos ares!

Colombo! fecha a porta dos teus mares”

Nós, homens comuns, quase diria, nós, homens vulgares em mais de um sentido, bem que podíamos melhorar nossa estatura humana com a admiração ao poeta dos homens e mulheres livres. Salve a sua poesia, salve a sua genial indignação, salve a sua grande arte, salve a sua poesia engajada. Numa palavra, salve Castro Alves!

Fonte: Blog BRASIL CULTURA

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