sexta-feira, 2 de outubro de 2020

O primeiro debate presidencial nos EUA e a crise da democracia - Por JORNALISTAS LIVRES

Confronto entre os candidatos mais destacados da eleição deu mais uma demonstração de como os agitadores podem usar nosso tempo atualista para destruir a democracia.


Na noite da última terça-feira, 29, ocorreu o primeiro debate presidencial para as eleições americanas. Trata-se de um momento importante na corrida eleitoral a pouco mais de um mês da votação em 3 de novembro. O cenário se mostra ainda bastante imprevisível e atípico em muitos aspectos. A começar pelo fato de que, no momento mesmo em que o debate ocorria, alguns cidadãos já haviam depositado seu voto nos correios. Uma das faces d
o caos geral criado pela crise do coronavírus.

Mateus Pereira, Valdei Araujo, Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana*

É comum que nesses espetáculos políticos o debate seja bastante tenso e acalorado. Mas com Trump a coisa atingiu outro nível. Ele subverte todas as regras de polidez e boa conduta que configuram a própria política como forma de mediar disputas. Biden também não deixou por menos: “Palhaço”, “mentiroso”, “racista” e “cachorrinho de Putin” foram alguns dos adjetivos usados pelo candidato democrata contra o seu adversário.

No entanto, há uma diferença de grau entre o comportamento dos dois candidatos que não pode deixar de ser sublinhada. Desde a primeira pergunta, Trump falava não apenas no seu tempo, mas também no de seu rival, talvez esperando irritá-lo e deixá-lo confuso. Biden reconhecidamente não é um bom debatedor – algo escancarado pela série de gafes que ele cometeu durante os debates para a nomeação do Partido Democrata. Mesmo com todas as limitações e provocações, o democrata parece ter ganhado o debate, segundo os principais institutos de pesquisa dos EUA. Mas o ponto que mais chamou a atenção foi a performance de Trump e, em especial, a sua insistência em não respeitar as regras que a sua própria campanha havia aceitado previamente.

Nem mesmo o moderador do debate, o aclamado jornalista Chris Wallace, escapou das interrupções constantes do candidato republicano. Ele precisou gritar e repreender Trump em mais de uma ocasião. Em uma delas[1] [2] disse: “Senhor presidente, eu sou o moderador aqui!”. Ainda no começo do debate, logo na segunda pergunta, precisou relembrá-lo a respeito do sistema de saúde nos EUA. Gesto que se repetiu ao longo de todo o evento. Em uma de suas respostas, Trump chegou a dizer que sabia que teria que debater com Biden e o moderador, colocando em dúvida a imparcialidade de Wallace: “Não estou surpreso com isso”, ironizou Trump.

Por sua vez, Biden falou de forma muito mais lenta e com tom de voz mais baixo que seu adversário. Procurava olhar mais para a câmera e se dirigir diretamente ao público, e insistiu por diversas vezes na necessidade de pacificar e unificar o país. Tentou se apresentar como um moderado, enquanto Trump acusava-o de pretender implantar o socialismo nos EUA.

Até que ponto esse discurso de moderado será bem aceito pelo público? Se Biden vencer essa postura pode indicar algum caminho para a esquerda e o centro brasileiro? Essas são perguntas que nos faremos até o final dessa eleição, que terá impactos diretos no futuro do governo Bolsonaro.

Ao longo dos 90 minutos do espetáculo, Biden se manteve mais atento às regras pré-acordadas, fazendo menos interrupções e, quando era interrompido, parou de falar em alguns momentos, esperando a intervenção do moderador para garantir o seu tempo. No entanto, isso não foi possível durante todo o tempo do debate, em função das insistentes intromissões do atual presidente. “Você pode calar a boca por um minuto?”, perguntou retoricamente o candidato democrata, em diversos momentos do confronto.

Mas Trump não se calava. Recusava-se a dar tempo para Biden ou Wallace falarem, o que deixou claro a sua intenção em tumultuar o debate e a sua tentativa de dominar a cena. Ao portar-se como um agitador – ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, repetia o mantra de sua campanha, “Lei e ordem” – Trump transformou o debate em um verdadeiro show de cacofonia. Para tentar dar ordem àquele caos, o moderador chegou a gritar contra o presidente. Aliás, um dos pontos levantados na imprensa foi a necessidade de mudar as regras para os próximos debates – sugerindo inclusive a possibilidade de se desligar o microfone quando um candidato falar no tempo reservado ao adversário.


Ao assumir o papel de agitador, Trump se revela mais uma vez como um político bastante sintonizado com a condição atualista, na qual convivemos com mudanças rápidas e contínuas sem, no entanto, criarmos a possibilidade de transformações estruturais. Nessa condição, o respeito às regras do jogo deixa de ter importância. Quanto a isso, o contraste entre os dois candidatos se revelou não só em relação às regras do debate em si, mas também quanto à própria legalidade da eleição deste ano. Enquanto Biden não hesitou em aceitar o resultado do pleito de novembro, qualquer que ele seja, Trump se recusa a assumir tal compromisso, acusando o voto por correio de ser uma fraude, exatamente como Bolsonaro e os bolsonaristas fizeram e farão em relação à urna eletrônica.

Há uma questão material, de fundo, importante e que torna o resultado da eleição americana imprevisível. Como bem afirma o cientista político polonês Adam Przeworski: “Eu tentava entender como alguém como Trump podia vencer uma eleição nos EUA e se manter popular entre 40% da população. A renda dos 50% da população pobre está estagnada desde o final dos anos 1970. As pessoas não acreditam que seus filhos estarão em melhor situação do que eles, o que acontecia desde 1820. Tivemos presidentes democratas e republicanos, e as pessoas percebem que quase nada mudou[3] .”[1] Para esse autor, a democracia pode ser definida como um regime político onde o governante deixa o poder quando perde as eleições. E é justamente isso que está em questão na atual eleição americana, como o debate deixou bastante claro frente à escandalosa atuação de Trump.

O passado é um elemento mobilizado pelos políticos atualistas para promover a agitação e dispersão. Com efeito, o primeiro debate televisivo da eleição americana deste ano confirmou o argumento que apresentamos em uma coluna anterior.[2] Ao tratar sobre o tema dos protestos contra o racismo, Biden apresentou um discurso que se coaduna com uma visão liberal-progressista da história, ao afirmar que a igualdade racial nunca foi plenamente alcançada nos EUA, mas que esse valor deveria servir como guia para o futuro. Uma ideia de história que reconhece as suas fraturas e imperfeições requerendo ação contínua no presente.


Trump, por sua vez, acusou a “esquerda” de promover o ódio e a divisão entre os americanos com a educação racial, e acusou essa pedagogia (“critical race theory”, ou “teoria racial crítica” em tradução livre) de destruir a essência americana de harmonia, convivência e paz. Ao propor essa visão simplista e congelada do povo americano, o espaço para a ação transformadora se fecha, bastando apenas atualizar tal essência idealizada e defendê-la contra aqueles que a ameaçam – nomeadamente a esquerda, os movimentos de negros e grupos minorizados que se recusam a aceitar o seu lugar nas hierarquias sociais que garantiriam a harmonia social: “Nós temos que voltar aos valores fundamentais deste país. Eles estão ensinando as pessoas que nosso país é um lugar horrível, que é um lugar racista, e eles estão ensinando as pessoas a odiar o nosso país. E eu não vou permitir que isso aconteça”.

Diante de tal afirmativa, Biden retrucou: “Ninguém está fazendo isso. Ele que é o racista”. E reafirmou a necessidade de unificar o país, atravessado pelos protestos contra as injustiças e desigualdades raciais. Essa nostalgia, vinculada a um passado mítico, que guardaria uma suposta “alma americana”, motiva o temor de que essa alma do povo está sob constante ameaça de se perder, graças à ação corruptora da “esquerda radical”. A questão é que com essa estrutura retórica, Trump opera em duas frentes: de um lado, ele se apresenta como o salvador patriota, o defensor da “verdadeira América”; de outro ele envia uma mensagem implícita (nem tanto) para a sua base, majoritariamente constituída de eleitores brancos de classe média, sem formação superior ou moradores de áreas rurais.

E aqui se nota como essa concepção essencializada de história se relaciona com a agitação atualista, encarnada pelo mandatário republicano. Ao se recusar a condenar abertamente os supremacistas brancos e acusar a esquerda, os grupos antifascistas e o Black Lives Matter como promotores da violência, Trump estimula o conflito interno no país e, consequentemente, o caos, a agitação, a radicalização e a divisão, afastando a possibilidade da moderação, da negociação e da construção do comum. É nesse ambiente que ele parece prosperar, ao custo (ou bonus) de corroer as próprias condições para a democracia.


Trump age como um bombeiro que usasse sua posição para atiçar e não apagar os incêndios. Intensificar o caos e o conflito pelo conflito é parte de sua estratégia, pois isso dá a ele a chance de se apresentar como o único com força e disposição para superar a crise. Já Biden, com um discurso mais alinhado com a tradição democrático-liberal, procurou se posicionar, nesse debate, em relação aos seus planos para a saúde, economia, segurança e meio ambiente, acusando o seu adversário de não ter plano nenhum para o futuro.

Mas, na condição atualista, falar sobre planos futuros parece ter menos importância do que saber navegar na agitação dos tempos e se apresentar como o defensor de uma essência idealizada que deve ser preservada a qualquer preço. Se, por um lado, a postura de agitador pode denotar um desespero por estar atrás das pesquisas, ela pode também passar a mensagem de força e destemor, de alguém que luta contra tudo e contra todos, inclusive contra o moderador do debate. De toda forma, o primeiro debate presidencial da eleição americana deste ano deu mais uma demonstração de como a democracia pode ser frágil frente agitadores populistas em um tempo atualista.

O destino do moderado e do agitador mostrará alguns caminhos de ação frente à atual crise democrática. É provável que se Biden vencer com uma margem apertada ou se os conflitos durante e depois da votação se disseminarem a eleição seja judicializada e conflitos de rua possam se espalhar pelo país. Trump está trabalhando firme para que isso aconteça, incentivando seus eleitores a fiscalizar os locais de votação e espalhando denúncias vazias acerca de fraudes. A nós, americanos do Sul, que vivemos sob uma democracia ameaçada, resta torcer para a vitória dos moderados. Mas, após assistir ao debate, fica a certeza de que a dúvida será a nossa companheira até o encerramento (ou mesmo depois) das eleições. Afinal, Trump surfa na onda atualista como um surfista experiente e isso não é pouco. Caso o campo democrático consiga sobreviver ao desafio, deverá ainda ser capaz de governar e reverter as causas estruturais que estão corroendo as democracias, em especial a concentração de renda e precarização do trabalho.

  (*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição.


[1] https://istoe.com.br/a-democracia-brasileira-esta-em-risco-com-bolsonaro/

Nenhum comentário:

Postar um comentário