Foto memorável! Pedro Celestino (esquerda), sendo homenageado pelo SINDERN!
O Aprofundamento do Racismo na nova
Lei do Saneamento
Por ser um negro,
penso como um negro. Minha raça, minha pesquisa e meu dia a dia como um
sanitarista negro determina minha compreensão de como aprestação dos serviços
de saneamento opera numa sociedade marcada por uma profunda desigualdade de
racial e de classe.
Numa sociedade racista a segregação
espaçoracial é algo visível. Os bairros e branco privilegiados possuem rede de
esgoto, sistemas de drenagem eficiente, serviço de coleta de lixo regular e
água com qualidade e quantidade adequada.
Por outro lado, as áreas conhecidamente
ocupadas pela grande maioria do povo preto a coleta de lixo é deficitária, a
irregularidade do fornecimento de água é constante e a qualidade é duvidosa e a
presença de ruas sem sistemas de drenagem e esgoto nas vias é algo comum.
Na condição de negro, senti e sinto na
pele o racismo entranhado nas estruturas da gestão do saneamento. Presenciei e
presencio o descaso da gestão pública para com as áreas tipicamente habitada
por negros e grupos marginalizados.
Um rápido olhar para periferias de Natal
irá presenciar esgoto a céu aberto, lixões espalhados por todos os cantos,
irregularidade no abastecimento de água, ruas sem calçamento e drenagem.
Enquanto isso bairros tipicamente ocupados por brancos de classe média alta
ostentam uma situação favorável de salubridade.
Um sanitarista engajado na superação das
desigualdades social, em
particular, na
promoção do saneamento, procura identificar aquelas práticas que causam danos
ao status social daqueles grupos marginalizados e a partir delas reformula
ações que garantam um serviço de qualidade aqueles e aquelas que mais necessitam.
Dessa forma, superar as desigualdades sociais e raciais pelo saneamento deve
ser o foco do sanitarista que pensa como um negro.
Pretendo neste breve ensaio criticar uma
perspectiva interpretativa que entende que grupos socialmente marginalizados e
historicamente subalternizados sejam tratados de forma equivalente aos
historicamente dominantes. Que as áreas menos assistidas com serviços de
saneamento deve ser tratada de forma igual, ou ainda que a análise técnica de
situações/problemas deva manter uma neutralidade.
Este ensaio teórico procura ainda oferecer
uma interpretação alternativa às narrativas presentes no discurso neoliberais
de privatização do saneamento.
O estranhamento ou a recusa da relação
existente entre raça e condições precárias de saneamento demonstra o quanto
fomos ensinados para ignorar esta relação, reforçando assim o racismo. Aqueles
que acreditam que não há racismo no
Brasil, respaldados por pensadores brancos
brasileiros, do início do Século XX, os quais propagaram a famigerada
Democracia Racial, vão sempre se perguntar por que se deve analisar e
considerar nas pesquisas e estudos de saneamento aquestões raciais?
Ao negar o caráter racial na análise do
déficit de saneamento do Brasil o pesquisador impede uma investigação mais
aprofundada da origem do problema.
Expurgar raça da equação causal só
contribui para a manutenção da negação dos serviços de saneamento para estas
populações. É dever de qualquer cientista, que dedica seus estudos e pesquisa
do saneamento no Brasil, considerar a temática raça como um componente
importante na análise. Sem esse recorte racial não seremos capazes de
compreender a realidade de exclusão no Brasil, seja desaneamento ou de qualquer
outra forma de negação de políticas públicas.
Por outro lado, focar a análise dos baixos
índices de atendimento somente pela ótica da renda, como vem sendo feito na
academia e muito bem utilizado pelos propagadores do liberalismo, mascara o
caráter racista que está por trás da negação dessas políticas públicas ao povo
preto.
É preciso que se diga. As periferias
brasileiras e seus altos índices de insalubridade ambiental, violência e
desemprego é um produto do descaso de um Estado estruturalmente racista, o qual
destina pouquíssimos (ou nenhum) recursos do orçamento, naquelas áreas habitadas
por uma maioria negra. Ao contingenciar recursos e políticas públicas nestas
áreas o Estado produz um espaço de exclusão social generalizado. Então não
esperem um paraíso social.
O impacto da negação dos serviços de
saneamento vai mais além do que a questão da salubridade ambiental. O abandono
do Estado, em não promover políticas públicas de saneamento, gera reflexos
negativos para a economia local, que por sua vez, pode gerar situações de
criminalidade, por exemplo. Um bairro repleto de lixo nas ruas, esgoto escoando
pelas valas e sarjetas, área que alagam com a menor chuva e que a
irregularidade no abastecimento é algo rotineiro, impedequalquer projeto de
economia local. Quem iria investir num bairro insalubre? Um bairro ou uma
comunidade sem atividades comerciais, sem emprego e sem renda, está propenso a
criminalidade. Ao negar saneamento a estas populações só reforça o grau de
exclusão que estes grupos já são submetidos.
Com a aprovação da nova Lei do Saneamento
(14.026/2020), que prevê a substituição de empresas públicas por empresas
privadas, é dado início a uma nova era da prestação dos serviços de saneamento
básico no Brasil. Entusiastas da causa enxergam nesse novo modelo de prestação
privada de serviço de água e esgoto a solução para os baixos índices de
atendimento destes serviços.
Essa nova etapa da história do Brasil,
iniciada com a derrocada das forças progressistas e a vitória do atual
Presidente da República, está sendo marcada pela negativa declarada do Estado,
de investimento em áreas estratégicas,
para a superação das desigualdades sociais e raciais, em particular do
saneamento. A nova onda (talvez um tsunami) liberal, surgida com a crise
econômica mundial de2008, veio para desmontar tudo àquilo que estava sendo
construído com muita luta e resistências pelas populações marginalizadas do
Brasil.
Presenciamos nos últimos quatro anos
ataques de políticas neoliberais em direitos trabalhistas, bem como nos
orçamentos da saúde e da educação, com a lei do teto de gastos, e ainda na
reforma trabalhista, a qual dificulta a aposentadoria de várias categorias de
trabalhadores. O empobrecimento da população, que já registra altos índices, se
agravará com a nova lei da privatização do saneamento, na medida em que será
inevitável o aumento do valor das tarifas e o desinteresse de investimentos em
áreas da cidade que não trarão retorno financeiro, como as comunidades
carentes.
Definitivamente, a eliminação do racismo
nas estruturas da sociedade brasileira não será por vias liberais. Fragilizar o
Estado é fragilizar o combate ao racismo. Fragilizar políticas estatais e
instrumentos de combate à pobreza, de combate ao racismo, de combate a
desigualdade racial, de gênero e social é a marca do liberalismo, onde se faz
presente no mundo.
Não custa nada lembrar aos adeptos do
liberalismo que estes direitos estão garantidos na nossa Constituição, em
particular o Art. 3o da nossa Constituição, nosincisos III e IV.
Art. 3º
...
III - Erradicar a pobreza e a marginalização
e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - Promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
Sendo assim, toda e qualquer ação de
política de saneamento deve levar em consideração a promoção da igualdade de
status social. Todo é qualquer recurso destinado ao saneamento básico deve
levar em consideração a superação das condições precárias de salubridade
ambiental. Portanto o foco do saneamento deve ser as áreas mais carentes,
aquelas onde os índices de saneamento são os mais baixos e não áreas as áreas
mais ricas, predominantemente ocupadas por brancos.
A luta pela igualdade de direitos, pela
igualdade racial deve partir de um princípio que tem como propósito a
eliminação de processos de marginalização social do povo preto. Quando se
destina grandes volumes de recursos em áreas da cidade com infraestrutura já
consolidada e ignora áreas periféricas, áreas conhecidamente deficitárias,
reforça o grau de marginalização dessas áreas da cidade, bem como reflete o
grau de racismo estrutural presente nessa tomada de decisão.
Cabe ao Estado e não a iniciativa privada
promover as transformações sociais. É a partir de políticas públicas que grupos
sociais racializados são incluídos em ações de promoção à superação de suas
condições de vida humilhantes. Não é pela iniciativa privada que virá o milagre
da igualdade racial. Pelo contrário. No atual estágio do capitalismo, a
interferência do neoliberalismo nas políticas publica tem aumentado
significativamente, gerando retrocesso civilizacional e aprofundando as desigualdades.
Apoiar esse novo marco do saneamento é
contribuir com políticas racistas, é contribuir com o a exclusão social do povo
preto, é contribuir para agravar ainda mais a triste realidade do saneamento no
Brasil.
A classe média se engana ao achar que
privatizar os serviços de saneamento irá melhorar a qualidade dos serviços. Ora
vejamos. Como não será possível atender a todos, o número de usuários
diminuirá, fazendo com que a tarifa, agora, seja rateada entre poucos. Além do
que agravará a saúde da população carente elevando os gastos com saúde.
Não se pode negar que há uma dívida
histórica do Estado para com a população negra. O Brasil escravizou os negros
por 350 anos. Gerou riqueza para sua elite, para a nobreza e contribuiu para a
acumulação primitiva do capital, o qual foi fundamental para a Revolução
Industrial da Inglaterra. Com o fim da escravidão os ex-escravos foram
abandonados a própria sorte. Esse descaso se reflete até hoje com as péssimas
condições de salubridade vividas pelas periferias de todo o Brasil.
Ignorar essa
história é pensar como branco. Homem branco meritocrata, que não consegue se livrar
de um racismo estrutural que corrói sua alma. Quando falo branco não me refiro
a todos os brancos, falo daqueles embevecidos de branquitude, de
universalidade, de superioridade, que acredita numa supremacia racial e
exercita todo ódio aos não brancos.
Não dá para ser antirracista e ser a favor
da privatização do saneamento. Não basta dizer que não é racista e ser a favor
do enfraquecimento do Estado. Combater o racismo institucional, o racismo
estrutural é incompatível com o discurso liberal.
Fala que é um ativista antirracista, mas
apóia e defende a intervenção privada em áreas estratégicas para a superação
das desigualdades, como o saneamento básico, não dá né?
Portanto, nossa bandeira de luta mais
urgente é banir e eliminar qualquer iniciativa liberal em áreas estratégicas de
superação das desigualdades sociais e raciais. Negar qualquer proposta
governamental que leve em consideração políticas liberais ou neoliberais (não
vejo diferença) de empobrecimento dos trabalhadores e das populações negras que
vivem em condições precárias de saneamento.
Não à privatização do Saneamento Básico!!!
Natal, 02 de
setembro de 2020
Por PEDRO CELESTINO DANTAS JÚNIOR
NATAL – RN
Geógrafo e Mestre em Engenharia Sanitária
Analista de Regulação em Saneamento