por Rodrigo Martins — CartaCapital
O maior obstáculo à emenda das eleições diretas é político, e não jurídico.
Enquanto Michel Temer se debate no cargo, o Parlamento insiste em levar
adiante as discussões das reformas trabalhista e da Previdência, rejeitadas
pela ampla maioria da população, além de aquecer os conchavos em torno de
candidaturas indiretas.
De nada adiantaram os ruidosos protestos que
tomaram as ruas das principais capitais do País nos últimos dias, a pedir o
afastamento imediato do presidente e exigir Diretas Já. Da mesma forma, as
pesquisas de opinião, a indicar que nove em cada dez brasileiros desejam
escolher o próximo presidente ainda neste ano, são ignoradas.
Alheia ao clamor popular, a base governista abusa das manobras
legislativas para evitar a aprovação de uma emenda constitucional pelas
eleições diretas.
Uma proposta nessa direção, elaborada pelo
deputado Miro Teixeira, da Rede, está em debate na Comissão de Constituição e
Justiça da Câmara, seja qual for o motivo da vacância do poder: renúncia,
impeachment ou cassação do mandato pelo Tribunal Superior Eleitoral. Para
evitar que o texto começasse a ser analisado na terça-feira 23, o presidente da
Câmara, Rodrigo Maia (DEM), apressou-se a dar início à ordem do dia no
Plenário, o que obrigou o colegiado a encerrar a discussão uma hora depois do
início dos trabalhos (detalhes na reportagem à pág. 14). No dia seguinte, o
peemedebista Rodrigo Pacheco, presidente da CCJ, incumbiu-se de segurar a pauta.
“Os aliados de Temer sabem que, se a emenda das diretas for a votação,
será aprovada. O desgaste político de quem se colocar contra será enorme”,
afirma o deputado Alessandro Molon (Rede), autor do primeiro pedido de
impeachment protocolado contra o peemedebista após a divulgação do indecoroso
diálogo entre o presidente da República e o empresário Joesley Batista, dono da
JBS. “A última coisa que o Brasil quer é ver o Congresso, com grande número de
parlamentares sob suspeição, pelas graves denúncias que pesam contra eles,
escolher no lugar do povo o novo presidente.”
O desalento só não foi maior graças a uma distração da base governista na
CCJ do Senado. Aproveitando-se da ausência de três senadores peemedebistas, a
oposição conseguiu aprovar uma inversão da pauta e dar prioridade à Proposta de
Emenda à Constituição apresentada por José Reguffe (PDT), a prever eleições
diretas quando os cargos de presidente e vice ficam vagos até o final do
terceiro ano do mandato.
Ao cabo, o relatório do senador petista Lindbergh
Farias foi lido, primeiro passo para que o projeto seja votado no colegiado. A
previsão é de que isso ocorra na próxima semana. Se aprovada na comissão, a PEC
seguirá para o Plenário. Ainda assim, caberá ao presidente da Casa, o
peemedebista Eunício Oliveira, colocá-la em votação.
No meio jurídico, há divergências sobre a conveniência de promover a
mudança na Constituição em um cenário de grave instabilidade política.
A rigor, não existe, porém, um sólido obstáculo
legal à aprovação da proposta. Conforme o disposto no parágrafo 4º do artigo 60
da Constituição Federal, somente são vedadas as deliberações de emendas que
tendem a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal
e periódico; a separação dos Poderes; ou os direitos e garantias individuais.
“Não há, portanto, qualquer violação às cláusulas pétreas”, avalia Fábio Konder
Comparato, professor emérito do Largo de São Francisco, a Faculdade de Direito
da USP.
Embora não veja entraves jurídicos à realização de eleições diretas,
Comparato nutre dúvidas sobre a capacidade de o País se reerguer. “Na verdade,
vivemos o sintoma de uma doença política, aqui instalada desde os primórdios da
colonização portuguesa. Trata-se, basicamente, da dominação constante da
soberania nacional por dois grupos associados: os potentados econômicos
privados e os grandes agentes estatais, permanecendo o povo, desde sempre,
alheio a esse conchavo.”
Para o advogado Rafael Valim, professor de Direito da PUC de São Paulo, a
teoria das cláusulas pétreas “veda apenas a redução ou o amesquinhamento de
direitos fundamentais”. Não existe – nem poderia existir – limitação para a
ampliação de direitos. “O que não se pode é restringir o voto universal e
secreto. O Congresso não poderia, por exemplo, transformar uma eleição direta
em indireta, pois o representante estaria cassando os poderes do representado.
É perfeitamente possível aprovar as Diretas sem qualquer ofensa à Constituição.”
O noticiário nativo tem dado ênfase às declarações do advogado Miguel
Reale Jr., um dos signatários do pedido de impeachment de Dilma Rousseff. Em
entrevista à rádio CBN, o conselheiro jurídico do PSDB afirmou que o Brasil não
aguentaria eleições diretas no momento, e que isso iria “conturbar o País” e
criar “imensa insegurança jurídica”.
Mesmo entre os que se opuseram à destituição da presidenta eleita, por
entenderem que não houve a comprovação de um crime de responsabilidade, sobram
desconfianças. “A solução para as crises políticas deve ser encontrada dentro
da Constituição, e não fora dela. Já sofremos um trauma enorme com o
impeachment ilegal da presidenta Dilma Rousseff, o que interrompeu o ciclo
democrático”, diz Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC de
São Paulo. “Uma nova ruptura praticamente impele à convocação de uma Assembleia
Constituinte. E, na atual conjuntura, o risco de recuo nos direitos assegurados
pela Carta de 1988 é muito grande. É mais provável haver retrocessos do que
avanços.”
De fato, a Constituição deve servir como um guia para atravessar períodos
turbulentos sem rupturas institucionais, e a crise não é um bom ambiente para
alterações constitucionais, pondera Valim. O especialista observa, porém, que
toda mudança normativa surge de uma necessidade. “Por que se criou a Lei Maria
da Penha? Percebeu-se grande número de mulheres vítimas de violência doméstica,
e ninguém diz que essa lei é casuística. Toda alteração normativa, da
Constituição a uma simples portaria, é motivada por um dado da realidade, um
problema que desperta a atenção da sociedade. Tampouco se pode falar em exceção
constitucional, porque a emenda valerá para todas as situações em que houver
vacância do poder.”
Professor de Direito Econômico e Economia Política da USP, Gilberto
Bercovici acrescenta que, na prática, a Constituição já não está mais em vigor.
“Acho engraçado, porque não vimos esse formalismo todo no impeachment de
Dilma”, ironiza. “Além disso, a emenda dos gastos públicos suspendeu a
Constituição por 20 anos, pois impede a efetivação dos direitos assegurados em
1988. Na verdade, chamar eleições diretas é a única forma de resgatar o Estado
Democrático de Direito. Estão impondo um conjunto de reformas que contrariam os
interesses do povo, só satisfazem aos grandes agentes econômicos e à mídia.”
Entusiasta das Diretas Já, Gisele Cittadino, coordenadora da pós-gradução
em Direito da PUC do Rio de Janeiro, não esconde a perplexidade com os
argumentos levantados por Reale Jr. “Dizer que eleições diretas causam
insegurança jurídica é um escárnio. O que causa instabilidade são esses golpes
sucessivos, um impeachment sem crime de responsabilidade, uma emenda que
congela a efetivação dos direitos sociais por 20 anos...”, afirma. “O que se
propõe é aprovar uma emenda para realizar eleições diretas. No momento em que o
Congresso aprovar a PEC, o texto constitucional passará a prever esse
procedimento. Não haverá, portanto, qualquer desrespeito à Constituição.”
O maior obstáculo às Diretas Já é político, e não jurídico, enfatiza o
deputado Alessandro Molon. “Por isso, vejo com enorme preocupação as
articulações em torno de candidaturas pela via indireta. Buscam a todo custo
impor um acordão.”
No noticiário, sobram rumores do apoio desse ou daquele partido aos
virtuais candidatos em uma disputa indireta. Ex-ministro de FHC e Lula, filiado
ao PMDB, Nelson Jobim emergiu na banca de apostas como o nome mais palatável às
maiores agremiações, embora ele próprio negue a disposição de concorrer ao
mandato-tampão de pouco mais de um ano.
Líder do PT na Câmara, Carlos Zarattini enfatiza que o partido não
participa de tais articulações. “Já nos procuraram pessoas do PMDB, do PSDB, do
DEM, do PSB. Todo mundo quer conversar, mas o PT tem uma linha clara: defender
as eleições diretas e suspender a votação dessas reformas, para a abertura de
amplo processo de negociação na sociedade”, explica. “Em toda crise, fala-se
que Lula, FHC e Sarney precisam sentar para costurar um acordo, mas não é um
acerto entre três ex-presidentes que vai resolver os problemas do País. A crise
que vivemos só será resolvida com mais democracia.”
De acordo com Zarattini, a bancada do PT deve se reunir no início da
próxima semana para debater uma proposta de antecipação de eleições gerais, não
apenas para o cargo de presidente, mas também para a renovação do Congresso.
“Isso demanda um grande pacto político, mais complicado de ser costurado, é
verdade, mas seria muito mais benéfico ao País do que uma eleição para um
mandato-tampão”, avalia. Seja como for, o partido promete não abandonar a
proposta das Diretas. “O Congresso tem legitimidade porque foi eleito pelo
povo, mas é complicado confiar uma tarefa dessa magnitude a um colégio
eleitoral tão restrito, 513 deputados e 81 senadores.”
postado por Daniel Pearl Bezerra
Fonte: desabafopais.blogspot.com.br